sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Sexta-feira, 30 de Dezembro de 2011

Quantos mares tens na tua vida?




hoje falava com uma amiga sobre Baleal e Tavira, dois lugares que dividem a minha vida ao meio, no bom sentido, claro. Dividir no sentido de separar duas épocas, duas fases, dois ciclos. O primeiro deles cabe todo no Baleal e nele vivem memórias que são as minhas fundações. Naquele tempo (como vem no Antigo ou Novo Testamento, não sei bem)... naquele tempo viviamos em Santarém, uma espécie de Texas europeu do século XIII, uma mistura bizarra entre memórias medievais, igrejas romanas e góticas, e touros, campinos, patilhas, touradas e capotes à Alentejana (e não à ribatejana como seria de esperar), bailes de garagem com mini e maxi saias, a Abidis onde ensaiavamos a nossa vida social, eu a morrer de timidez, com camisolas de lã feitas á mão pela minha mãe, mais os bailes de Carnaval no Clube, o terror de ficar sentada toda a noite sem  que ninguém me viesse buscar para dançar, a cara a escaldar depois de um slow, a excitação do twist nas festas de anos só com raparigas, as noites húmidas e frias nas ruas de São Bento a jogar às escondidas, o episódio triste do livro do padre Amaro. Coisas de mãe que se preocupa e que delata - sem maldade e na maior inocência - os meus mais íntimos segredos às minhas amigas - e a tragédia do tanque dos Themudos, em que fui acusada de ser queixinhas, um trauma que me perseguiu muitos anos. Subi a encosta do monte a correr, os cabelos a pingar a água do tanque, sufocada de desgosto, deixando para trás a «piscina» pintada de azul com a água transparente que chispava por entre as árvores à medida que eu me afastava.
Quando chegava o mês de Agosto, trocávamos Santarém em chamas pelo mar do Baleal em fúria e pelas intermináveis nortadas que nos punham literalmente os cabelos em pé. Acampávamos numas casinhas alugadas, felizes da vida. Um dia convidei uma amiga engraçada, que jamais havia pernoitado em tão precárias condições, e que nos olhou entre o aterrorizado e o dó, e nos disse com voz de mel: «são tão engraçadas estas casinhas de pobrezinhos, são tão patuscas». Estragou o ambiente, a dita cuja. Também fiquei dividida e baralhada como ela, por um lado um bocadinho humilhada (casinhas de pobres?), por outro com vontade de a meter na primeira camioneta para Lisboa. Mas era difícil e escusado explicar-lhe o nosso fervor pelas casinhas «de pobres». Era dificil explicar porque era tão bom andar descalça todo o dia e chegar ao fikm do mês de Agosto com a pele dura na sola do pé. Também não era fácil entusiasmá-la pelo prazer de ouvir o roncar das avionetas no céu azul depois do almoço, ou sentar-me nos bancos de pedra em frente ao mar, de andar em cima dos chorões, de passear quilómetros nas Pedras Muitas, de me deitar na areia fria da praia pelas nove horas da manhã. Um milhão de coisas pouco óbvias para poder explicar porque gostava tantio delas, e muito em particular demonstrar os efeitos do feitiço tremendo de um mar selvagem de muitos verdes por entre as rochas,  rochedos e nas poças à beira mar, onde um dia uma das crianças Ortigão se ia afogando porque foi descendo o pequeno abismo com passinhos suaves sem que a mãe se apercebesse do perigo da transparência traiçoeira. O menino foi pescado por uma alma benevolente enquanto a mãe dizia «ai!».
O mar sempre ali tão perto. O núcleo duro de mim está ali.
Muitos anos depois, foi Tavira, uma explosão de calor e de luz. Atravessámos o Algarve para almoçarmos em casa de uns amigos, no meio das figueiras. Quando pus o pé no chão, assim que chegámos, e senti o calor sufocante na cara, jurei voltar sempre. O sonho das noites abafadas. Tomar banho á noite na água escura e morna, tomar banho de dia na água transparente e quente. A minha mãe telefonou-me e disse: «estou de casaco comprido de Inverno, aqui no Baleal, porque esta noite arrefeceu». E eu, do outro lado do fio: «não consigo respirar com este calor, as noites deitam fumo como as fogueiras...». E se eu vestisse o meu casaco de Inverno num Agosto de 40 graus em Tavira?

Tavira linda, brilha de dia e de noite, atravessamos a ria de barco ás nove da noite, de volta a casa, depois de nos arrastarmos todo o dia nos toldos uns dos outros, feitos com lençois que trazemos de Lisboa. Este ano as areias mudaram e na maré baixa a ria está seca, atravessa-se a pé. Só enche na maré cheia, e mesmo assim encontro trilhos no fundo e passo para o outro lado com água pela cintura. Acabaram-se os barqueiros, sou eu agora que conduzo a minha vida. Exagero, não é bem assim mas quase. Eu e o barqueiro andamos de braço dado por entre os pântanos de lodo preto, os caranguejos saem de todo o lado. Por segundos tenho medo, acho que vou gritar, mas já não há volta a dar. Andar em frente e depressa. O barqueiro sorri-me de longe. Decidiu ficar para trás.
Tavira é como um coração enorme, generoso, o seu céu é demasiado azul, o sol incendeia tudo. Cem igrejas e muita música. Os meus amigos, as nossas tardes, as noites, as manhãs tranquilas. As conversas intermináveis dentro e fora de água. Em Tavira, neste segundo ciclo da minha vida, fiquei mais perto de mim por várias razões. E ficar mais perto de mim, é isso mesmo: é estar mais perto do fundo, voltar ao mar ali tão perto, é reencontrar o meu lado «atlântico», mais «rochoso», é voltar a sonhar com algas, vento e falangetas de dinossauro arrancadas às falésias com milhões de anos.
No Baleal, a água é a da alma inquieta. Em Tavira, a água é a do útero, onde voltamos para dormir uma sesta tranquila.

sábado, 5 de novembro de 2011

Vespas e grupanálise

no fundo do corredor abri uma porta e ouvi um barulho estranho; um zumbido? pode ser um zumbido? dentro de casa? na janela as vespas «acotovelavam-se», para cima e para baixo, a falarem daquela maneira arrepiante, sussurrada, afiada. Pensei voltar para trás mas o meu lado que sonha com perigos e confrontos, para mostrar não sei bem a quem de que sou capaz de coisas difíceis, e também ,porque não? uma pontinha de sadismo e destrutividade, fez-me voltar atrás e tirar um sapato, naquele quarto do fim do mundo, teias de areias e luz filtrada pela sombra escura das vespas. atirei-me a elas com raiva e com medo. E quando comecei a vê-las cair no chão, fiquei...não sei..... grande vitória a minha, vespas perigosas esmagadas no chão.
 Voltei para trás e entrei no corredor enorme, pensei que vejo o mundo de dentro de uma casa, que é a minha casa, o meu mundo e a minha história. Há casas, não todas, que mexem comigo e me levam para trás, de repente, e esta tomou conta de mim rapidamente. Senti a sua tristeza densa, com um passado imenso dentro daquelas paredes, uma casa que se desmorona e que leva consigo toneladas de vidas passadas, uma casa que se esboroa, plena de silêncio e tristeza. Nos corredores moram ideias, memórias, lagrimas, riosos, esperanças e tudo. Acho que chamam por mim. Não me importo. A manhã começou mal, acordámos talvez todos entranhados daquelas memorias tristes coladas ás paredes dos quartos - que parecem ter mil anos e contudo dir-se-ia que ainda ontem foram usados, as camas e os cobertores parecem ter sido mexidos. Embirrar uns com os outros logo de manhã é delicioso. Promete. E assim, de hora a hora o tom sobe, e o ar carrega-se. Saímos, entramos, voltamos a sair, inventamos mil pretxtos para não discutir mas ao cair da noite, basta um mal-entendido e a casa explode. Cada um traz os seus medos, acusações, amarguras. Cada um conta a sua história e há ameaças extremas no ar. De repente, naquela fortaleza longe do mundo, sentados numa sala dourada e um piano caladissimo, atiramo-nos uns aos outros e eu, a grande passiva que assassinou mil vespas hás umas horas, voltei a deixar subir a fera que dormita, a mesma que pegou no sapato por nmedo e rauiva, e acuso. Acusar é bom porque me dá uma sensação de fazer justiça enfim, de ajustar contas tão antigas que nada têm a ver com o que ali se discute. Com todos, acontece o mesmo. para cima da mesa trazemos razões fúteis mas as nossas mágoas antigas fazem de nós crianças grandes. E por isso gritámos todos fúrias e loucuras talvez por terms dormindo num acasa moribunda. A sua morte anunciada acorda os nossos medos. Projecção, diriam os meus profs. Adoro esta palavra, uma projecção é como um espelho gigante, enorme, que trazemos dentro de nós, e que nos reflecte uns aos outros, que nos obriga a vermos o nosso pior lado no outro. Esse outro, que é apenas um pobre espelho, acaba por pagar por isso sem saber muito bem porquê.
Mas o melhor chegou, enfim. O rebentar dos medos limpou o ar. Ficámos de repente muitos juntos e felizes, ou pelo menos tão perto da felicidade quanto se pode estar numa casa-fortaleza que nem sequer está perto do mar mas no meio do alentejo distante. Um dia quero passar uma noite na fortaleza das Berlengas para sentir o que é o vento bravo na cara. Para ver o mundo através dos barulho do mar. Um dia quero fazer grupanálise em pleno oceano sóp para ver até onde nos leva a fúria das ondas. Um dia querto ver se o afecto renasce depois das mais duras tempestades, fechados na fortaleza. De manhã, a água à volta dela vai estar transparente até quilómetros de profundidade. Debruço-me na janela de pedra e vejo-me nesse espelho sem fundo. Só para ver o que acontece.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

a cada virar do berço segue-se um novo ciclo.


muitos anos ouvi uma história sobre mim, que a minha mãe contava alegremente, totalmente alheia ao facto de eu me sentir aterrorizada com  a sua alegre narrativa. Claro que as mães, coitadas, principalmente as mães dos anos 50/60, não faziam a mais pequena ideia do que era psicologia, quanto mais psicanálise. Nem queriam saber, aliás. Naquela altura ser intelectual era um insulto, saber mais do que de panelas e criadas era, diria,  uma verdaderira provocação ao pudor, ao recato, ao bom senso, á tranquilidade das tardes amenas passadas na cavaqueira antiga e despreocupada num mundo que desapareceu. Era um mundo tão tranquilo que se ouviam as moscas e as abelhas a esvoaçar preguiçosas, a bater nos candeeiros. Pois esse velho meteorito morreu para sempre e eu acho que vale a pena a aventura da sua morte, apesar dos incómodos perpétuos que causa. Porque é intenso este mundo. Complexo, rico, imenso, polémico, feroz, injusto, violento, vingativo, frio e cruel. mas eu adoro este raio deste mundo. O que eu gosto disto. Em cinquenta (e poucos...) anos, vivi cem. Nem mais. E pensar que foi por acaso que sobrevivi, o que eu teria perdido se assim não fosse. Assim, a história que me apavorava - não quer dizer que fosse apavorante - contava que na noite do meu nascimento, estando eu a dormir num berço alto, muito antigo, como se calcula, algures num estranho e bizarro hospital de Abrantes - ímagino mal esse lugar distante  mas penso imensas vezes que era mal iluminado e pintado de branco sujo, já amarelado, e nos cantos havia baldes com gazes sujas e coisas horriveis assim do género. Pois a minha mãe dormia o sono dos justos nesse lugar escuro em que esvoaçavam morcegos pela certa, e a m inha querida avó cuidada do meu sono leve, ainda mal abada de nascer, ao que parece muito feia, revelou-me solicita, a minha mãe, que é franca e honesta, e não gosta de mentir. A maioria das vezes, digamos. Pois eu era feia mas por sorte «fiquei bonita» - que sorte, meu deus! - ao contrário das minhas irmãs, coitadinhas, «mais feiinhas». Nunca recuperaram do encarquilhamento do parto.  Mãe, viva a honestidade, sim senhora, assim é que é.
Portanto, estava eu a dormir o sono de passarinho frágil acabado de arrancar às entranhas da mother, arrancar de uma forma, diga-se de passagem, inquietantemente moderna para a altura. Quer dizer, de cesariana feita com epidural.  Naquela Abrantes do fim do mundo faziam-se cesarianas com epidural há mais de duzentos anos, imaginem. Com o maior sucesso. Que estranho!!!!!! um médico muito á frente do seu tempo, pegou numa agulha e enfiou-a nas costas da minha mãe e assim a anestesiou. E eu fui rapidamente sacada das trevas.
Dormia eu portanto, o sono dos recém-chegados quando terei emitido um gemido. E a minha avó que me cuidava e velava, lançou a mão ao berço para me embalar. Mas...azar, estava escuro, o pé do berço era altissimo e leve e assim ela sem querer virou-me o berço ao contrário, e eu caí da altura de metros, «por sorte», diz a minha mãe com ar satisfeito, enrolada em muitos cobertores porque era inverno. e em Abrantes quase neva. Parece que foram os cobertores que me salvaram.
esta queda infernal entranhou-se em mim, não sei como foi, estas coisas do psiquismo são inafalíveis. Acho que várias vezes me despenhei, como um padrão na minha vida que não muda. Não deixa de ser excitante.
a cada virar do berço segue-se um novo ciclo. estou, no momento, talvez no chão, enrolada por sorte num mionte de cobertores quentinhos. a preparar-me para levantar voo outra vez.
Assim, quando olho para esta fotografia aérea do baleal, sinto uma vertigem, um calafrio de felicidade. É assim como uma promessa de queda, mas de queda no azul do mar, do céu, do mundo. é voltar às origens, como se despenhasse de um berço incomodo e me atirasse no azul da eternidade. Querido mar.









domingo, 24 de julho de 2011

Uma viagem na rocha

Íamos de casacos de lã para a praia, muito cedo, como o meu pai gostava. E no Baleal muito cedo quer dizer 8 e meia, hora improvável para se estar na praia, em que o vento assobia ou o nevoeiro está cerrado. Assim, parece, tenho uma ideia, de que levavamos vários casacos e que os íamos tirando até ao meio dia, em que o sol costumava aparecer. Um dia a minha mãe contou a rir que estávamos todos em cima de uma rocha, a fingir que era um barco, e a Fau estava a chorar desconsoladamente muito perto do dito barco. Perguntou-lhe porque chorava e ela disse que já ele já tinha partido, estava em andamento algures no oceano e que não a tinham avisado porque o barco já estava «cheio». Não cabia mais ninguém. Inocente, a Fau. Ficou na areia a chorar até que alguém lhe disse: «miúda, aquilo não é um barco, é uma rocha e está parada». Ela, confusa, lá foi secando as lágrimas. «Não é um barco?».
 Achei-me esperta diante da inocência dela, achei graça á sua credulidade, a chorar porque o barco partiu cheio e não a deixaram embarcar. As irmãs mais velhas podem ser assim. Quando são pequenas, pode acontecer que se sintam contentes quando as mais novas choram. Parece que faz parte da vida e há que aguentar, dizem os adultos que não percebem nada. A mais velha precisa de se sentir esperta, a mais nova ainda não aprendeu que o barco afinal «não partiu» e que as rochas não são barcos e que os miúdos triunfantes estão tão parados como ela, ali, na areia. Ainda acredita nas coisas coisa mágicas da vida, que o barco é afinal uma rocha alta e lindissima, firme na areia, apinhada de miudos contentes que acreditam que vão em viagem ao fim do mundo.
Grandes viagens se fazem nestas rochas imaginárias. Assim como se fazem na vida, depois, viagens que demoram anos a fazer, dentro de nós, fora de nós, ao lado de nós, por cima de nós, ao fundo de nós. Fazem-se milhões de viagens como se tivessemos um milhão de anos para viver. E temos. Um milhão de anos vividos, muitos desertos atravessados, muitos temporais enfrentados, por planaltos, montes e vales, em espaços «nunca antes navegados» feitos de rochas, pedras e vidros, algodão, céu e luz. A transformação tem vindo a cumprir-se, a par e passo, e agora temos uma pele nova em folha, uma alma refrescada. Vale muito a pena viver, que é como quem diz, viajar. Numa grande rocha alta, a cheirar a algas e a mar, a que um punhado de miudos um dia trepou, e se sentou no cimo, a velejar a dita rocha, em direcção ao fundo do horizonte.

sábado, 9 de julho de 2011

uma gota de água

«Eu, Mário Crespo, adolescente de 64 anos gosto de acreditar que depois da morte a vida não acaba e que nós, gotas de água, voltamos ao mar de onde viemos e fundimo-nos com ele para sempre». Não terão sido exactamente as palavras do jornalista Mário Crespo mas foi qualquer coisa assim que ouvi e que me deixou uma deliciosa tranquilidade. O homem é sensível, e gostei da maneira suave e determinada com que respondeu a Filomena Mónica, que mais uma vez declarou que não senhora, não acredita em nada de regressos de gotas ao mar imenso, porque com a morte acaba tudo. Acaba tudo. Tudo. Já a vi declarar este tipos de certezas de outras vezes, como uma espécie de desafio infantil, como um bater de pé teimoso, como uma adolescente rebelde de quase setenta anos, que teima que não acredita e que afirma isso de forma orgulhosa como se dissesse:«não tenho medo de nada, sou suficientemte forte para afrontar o medo da morte, do vazio, do nada, do fim da esperança, dos afectos, das ligações, das memórias, de tudo». Sou forte, diz ela, mas eu juro que lhe vejo um olhar assustado no fundo dos olhos azuis, eu diria que ela é ainda uma menina pequena, sozinha, desamparada, que mostra ao mundo que afronta o grande adeus da morte afirmando que depois dela nada nos espera, a não ser o nada e a  terra sobre uma caixa de madeira onde ficará o que resta do nosso corpo.
Ela pode até afrontar o medo, até pode esconder a apreensão, e é legitimo que o  faça. Todos temos direito a ter medo e cada um defende-se dele como pode. Mas sinto-me mais perto do «adolescente» Mário Crespo. Acredita que somos gotas de água. Também não faço esforço em me ver como uma gota de água - afinal o que sempre mais gostei de fazer foi mergulhar dentro dela, sentir-me fazer parte dela, sonhar com ela, nadar até ao fundo, rente á areia e sentir a sua frescura. Por isso, nada mais natural que ir ao seu encontro no momento em que tudo acabar. Não sei se será uma uma ilusão mas não, acho que não. Fundirmo-nos com um oceano maior parece-me justo, parece-me normal. As coisas, a vida, os afectos, aquilo de que somos feitos não merece acabar assim e de repente cairmos na escuridão profunda dos tempos e acabarmos feitos pó, sem memórias, sem passado, sem presente, sem nada. O afecto, só por si, não nos deixa acabar feitos esqueletos sem história. Ficamos nos corações dos outros e os outros ficam no nosso coração. O afecto que nos junta é prova de eternidade. Essa é a nossa eternidade. As palavras, as conversas, os risos e as cumplicidades, as alegrias e as tristezas fazem parte de uma ordem maior, subtil, muito mais fina e imensa do que uma caixa de madeira que desce á terra e nos remete ao esquecimento, ao nada. Eu sou adolescente, Mário Crespo. Acredito que sou uma gota de água, sim, e que no fim talvez tenha essa sorte e alegria imensa de me diluir e descansar para sempre no meio do mar imenso, afinal o mar onde molhei os pés desde que me lembro, onde nadei toda a minha infãncia e juventude, o mar que me ia engolindo várias vezes, das ondas altas de Outubro que me fizeram tanto medo. Mas afinal sinto que é ali que pertenço e que vai ser bom deixar-me diluir lentamente e juntar-me a todas as memórias de todos os tempos, para sempre.

sábado, 11 de junho de 2011

onde nos levam as correntes

quem somos? somos o que fazemos, o que dizemos sem pensar, o que pensamos sem saber, o que amamos, por onde vamos, para onde vamos, o que sonhamos, como nos enraizamos, como voamos, como nos entregamos. No Baleal, há muitos anos, sentava-me em cima das rochas e ficava a olhar o mar lá no fundo, verde, verde escuro,verde mais claro, a espuma, depois outra vez verde escuro, depois o barulho da água funda a bater nas rochas. Naquelas estranhas rochas inclinadas, cinzentas, cortantes, meio enterradas na ágvua verde escura e funda. O meu pai contou-me que a ilha inclinada em talhadas era consequência de um terramoto, maremoto, vulcão, não sei. Acho que do fundo do mar se abriu um buraco enorme e deitou em jacto uma massa cinzenta a ferver e que esta caiu aos bocados no mar, como filas e filas de sanduiches de pedra. Ou então, a ilha estava sossegada no meio do mar, e a terra tremeu no fundo dos fundos e a ilha abanou, estremeceu, baralhou-se e «voltou-se», inclinou-se e assim ficou para sempre em fatias imensas, a entrarem na água escura em viés. Não sei porquê, mas aquela coisa da ilha entrar inclinada no mar emocionava-me ao máximo. Ficava ali horas e horas a ver as «fatias» perderem-se no verde das ondas, a imaginar esse primeiro tempo dos tempos, em que nada existia. E numa noite, subitamente, a ilha caiu de costas, mergulhou entortada. Milhares de anos depois, ali estava eu a olhar. Ainda estava tão longe de tudo. Ainda estava tudo para começar. Um dia uma mulher ia no barco com o marido marinheiro e o ferro com que apanhavam os chocos e os percebes caiu ao mar, sem que ela fosse a tempo de o agarrar. Ouviu-se um grande borborinho na ponta da ilha: a mulher atirara-se ao mar para salvar o ferro enorme. Estava toda vestida e o peso da roupa puxava-a para baixo - ela mal sabia nadar mas não largou o ferro. Cá em cima das rochas, as pessoas juntavam-se e pediam-lhe que o largasse para não ir para o fundo com ele. mas ela não ouvia nada, jurou que não o largava e ia avançada no abismo verde escuro gelado, sem largar o ferro comprido, o vestido agarrado às pernas, com os limos negros a prenderem-lhe as braçadas. Alguém lhe deitou uma mão e ela acabou por subir para o barco. Estava exausta, encharcada, o cabelo a pingar.
Pensei quanta coragem era preciso ter para mergulhar assim naquele mar tão intenso, tão selvagem, mas a mulher era da terra, vivia ali há muito tempo e estava habituada às agruras da vida, ao sol que lhe queimava a pele, ao sal que lhe gretava a boca, ao cabelo que se colava ao pescoço com a humidade da maresia. Tive medo por ela e por mim. Imaginei-me no lugar dela, pensei que às vezes não há saída e que a vida é dura e não há como fugir aos confrontos com o mar agreste que quase nos leva a vida. Muitas vezes não há mais nada a fazer senão mergulhar e arriscar tudo, sem ter tempo para pensar. Somos empurrados para a frente. Somos mais verdadeiros e inteiros, estamos mais perto de nós, em situações limite. Quando tudo corre bem, não temos grande intensidade. Arrastamo-nos agradavelmente entre duas chávenas de chá, uma torrada, duas conversas, umas brincadeiras e risos, tudo rola porque a vida é fácil,e ás vezes é tão fácil que nos fartamos da facilidade e inventamos insuportáveis dificuldades, coisas absurdas e pequenas, irrisórias, frivolidades imensas, confortos mornos que nos roubam a alma.
Quando sem querer caímos do barco e mergulhamos nos abismos verdes e gelados, e o mundo se vira do avesso, agimos como um todo, em bloco. É o momento do tudo ou nada. Tudo o que não é verdadeiramente importante fica para trás. Ficamos mais perto do centro, somos mais nós, levados às cegas pelas correntes da água. É a altura de nos entregarmos, voarmos, deixarmos os pensamentos terem vida própria, livres e nos levarem onde nos leva a liberdade.
Pensando bem, tudo isto é verdade, mas hoje gosto de me sentir a salvo, quentinha, na sala, a escrever o que me vem á cabeça, como se o mundo coubesse aqui dentro da minha sala. O mar, ao longe. A luta que espere. Hoje vou dormir descansada. Amanhã, veremos. Ainda vem longe.

domingo, 5 de junho de 2011

Aventuras no piscinão

saio com uma amiga para votar, descemos lentamente a rua da Esperança, um nome lindo para se dar a uma rua, a uma filha, a um projecto, não sei, está calor e nestes Domingos quentes é bom conversar descansadamente rua abaixo e eis que entramos no lugar dos votos. Mesas, pessoas e papel. Aí vai ele, o meu voto. Muito gosto eu de votar. Hoje, sabe-me a amargo, este voto quase inútil, que cai numa caixa sem fundo, sem projectos, sem esperança, de repente, se me puser a pensar no processo fico meio morta de tão cansada porque sei que não há força suficiente para mudar nada. Não gosto de tiradas pessimistas mas imagino-me do tamanho duma formiga a empurrar um planeta que pesa chumbo até à eternidade. Melhor é votar na minha vida e na das pessoas de quem gosto. De volta, decidimos tomar um pequeno almoço descansado, sentadas, num café da «esquina» que não é de esquina, e assim foi. Mal tinha posto um pézinho no degrau da entrada e eis que me acena um braço amarelecido, o que me preocupa logo. Egoísta, fria e má. Atrás do braço vem aquela carinha toda pintada de fresco, com umas pestanas impensáveis, longuissimas, o cabelo com riscas roxas entremeadas com castanhas, armado como uma rocha que nunca estremece, o baton castanho a brilhar, os óculos quadrados, a roupa cheia de cor....Começa a acenar freneticamente, há poucas mesas livres, eu e a minha amiga olhamo-nos preocupadas. Era só um pequeno almoço descansado, uns dedinhos de conversa. E a dona do braço:«Ana, Ana, Ana, Ana.......». Tarde para recuar e também não há muitos cafés abertos. Velhacas, vamos ao balcão pedir os cafés enquanto olhamos rapidamente em volta à procura de um lugar vago. «Colamo-nos» a uma casal numa mesa dupla e bebemos o café afundadas na chícara, na esperança - outra vez a maldita esperança - de dissuadir o invasor. Eis que ouvimos uns passinhos miudos e arrastados, e aí vem ela, de moldura de retratos na mão, muito contente: «adivinhem quem é?». Terror, conheço-a há anos e anos e esqueci-me do nome. Este medo é disparatado, é culpa pura. Aponto a medo para a fotografia da esquerda e ela diz que «sim, sou eu..». E do outro lado? «o homem da minha vida...», diz com ar intenso. Quando lhe ia a responder «o seu marido», ela adianta-se. «O meu filho, um homem que sempre foi lindo e se aqui estava lindo, agora está cada vez mais bonito». Ah pois. Já me lembro. Detesta a nora, que «é má, má, má». Ya, belo Édipo, dona Flor, desgraçado do puto, o que havia de lhe acontecer. O marido morreu, a nora é má, o filho «é um santo», as netas têm medo da avó. Nada mais «prático» do que uma boa teoria. É chapado. O filho único e lindo, fardado de oficial da marinha, estraçalhado entre duas mulheres sem um pai que o proteja. Se é que algum dia o protegeu. Vicissitudes, dizem, vicissitudes. E ela continua: «jornalista, como eu gostava de ter sido jornalista!». Calculo, acredito profundamente e lamento-a. «Mas a minha mãe proibiu-me, e eu desisti do que mais gostava». Eu a a minha amiga olhamo-la contristadas, em silêncio. «Ou então..», continua...«ai...como é que se diz? agente secreta da Judiciária». Percebo-a bem, respondo. É verdade. também era um dos meus muitos sonhos delirantes «do porvir». De novo as vicissitudes. Levantamo-nos ás arrecuas, pagamos, dizemos-lhe adeus, «um bom Domingo....dona....». Grita do fundo: «Votaram bem?». Muito bem. Bom Domingo!!!!! E para si também.
Olhando para o meu irmão no piscinão, tão novo, tão contente, entre as rochas e o mar, penso nas vicissitudes que nos trocam as voltas e surpreendem, e o que era para ser já não é, e o que não era para ser, acabou por se instalar. Por enquanto. Se quisermos, nada é para sempre. As vicissitudes entre o piscinão e o mar podem ser uma grande ajuda e obrigar-nos a encontrar o caminho, com unhas e dentes antes que seja tarde. Antes que as noras nos odeiem, antes que as netas tenham medo, antes que o sol se ponha para lá do psicinão.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

voltar ao princípio, numa praia das Berlengas

Toda a vida, desde que comecei a ser gente e a andar pela areia fora, tive o desejo imenso, irracional e desvairado de ir ás Berlengas. Ouvia falar das travessias de barco, dos ventos perigosos, da velha casca de noz que se «entornava» perigosamente, e do pessoal que corria alegremente perigo de vida, como os velhos marinheiros que se enfiavam num barco sem saber se voltavam. O mar, o gigante, a força bruta, pode ser romântico e interminável até ao horizonte mas também pode virar uma fera e dar cabo de tudo e de todos sem deitar uma lágrima.
  Agora, que olho para trás, e que já começo a ter uma ideia do lugar que o mar ocupava e ocupa na nossa vida, na minha e na do meu irmão, vejo que ele esteve lá sempre e está ainda entranhado nas nossas fundações. A minha melhor noite do ano era a noite da «chegada», quando finalmente me deitava numa cama de colchão de palha, entre lençóis húmidos e frios, a vela apagava-se e eu deixava-me ficar muito tempo a ouvir o barulho do mar que entrava por todo lado, naquelas casas impensáveis, cheias de caruncho e bolor, em que as janelas mal fechavam. e ainda bem. Ouvir o mar a falar daquela maneira é ainda uma das minhas  melhores recordações. As noites nas Azenhas, em cima de um mar imenso, são uma brincadeira ao pé do rugido do baleal by night escura. No fim do mundo, já não sabia onde acabava o mar e começava eu. E depois, a Berlenga. as berlengas.
As histórias das travessias difíceis. Depois de muito insistir, a minha mãe lá acedeu a levar-nos ás Berlengas, com um grupo de mães e crianças pequenas - lembro-me particularmento do Zé António da Nené. tenho uma fotografia em que eu, com cinco ou seis anos, o beijava à força e o miudo berrava como um doido, não sei se de medo, se de fartote, se de se birra. Sei que não ficou nada bem na fotografia: a boca toda aberta, desesperado, os dentes á mostra, o chapéu a cair, o fato de banho sem forma, um horror. Durante muito tempo pensei porque me eu teria dado ao trabalhado de beijar teimosamente semelhante criatura, ainda por cima estando ele tão contrafeito, tão furioso e ...como diria... assustado? Não mereceu, pensei anos e anos, não mereceu. Hoje olho a fotografia e sinto uma ternura imensa. Coitadinho do Zé. Era um dos meus grandes amigos. Acho que ele terá ido na viagem á Berlenga. A minha mãe apavorada, como era o seu estado normal, enfiou-nos Vomidrine, o comprimidinho amarrelo e amargo pela garganta abaixo. Era para «não enjoar». Obrigadinho. Não enjoei mas fiquei com sono e a boca amarga. Naquela altura a minha mãe enfiava-nos o que queria pela boca abaixo, desde sardinhas assadas com espinhas (porque era muito bom), até sopa de ovos com tomate e óleo de fígado de bacalhau misturados. E nós, que ignorávamos que havia lá fora um  mundo diferente, papávamos tudo sem um pio. 
A travessia ficou-me na memória. A postura da minha mãe dava a entender que a qualquer momento o barco podia naufragar, mas OK, pensava, pois que naufrague, sempre seria uma sensação diferente. O que eu mais queria era aventura. Apesar dos Vomidrine, houve alguém que vomitou. Vi uma rajada de uma papa branca a rasar-me o nariz, levada pelo vento feroz. Penso que foi a Fau mas ninguém disse nada. Também tenho a ideia de que nos deram umas sanduíches e nos ordenaram que nos sentássemos no chão para o barco não virar, especialmente lá num sitio particularmente perigoso, uma espécie de passagem da barra, tipo Barra do Inferno, em que há vagalhões à espera das nozes.
O barco passou, resistiu e ancorou. O meu coração batia mais depressa. Dei os meus primeiros passos no cimento, a cambalear com o vomidrine e o vento. Mas a ilha estava em perfeita paz. Entrei no paraíso. A sensação geral que me ficou até hoje foi de felicidade plena que atingiu o seu máximo quando descemos para esta praia, onde rapidamente se perdia o pé na água transparente. Estava «quente», a água, coisa quase impensável nas Berlengas. Mas eu lembro-me dela, de facto, pelo menos morna. Foi o meu histórico regresso ao útero, onde vivi o melhor sonho da minha vida. Passei o dia a nadar, todos a nadar, mesmo os que não sabiam, uma felicidade imensa que ficou para sempre na minha memoria e que voltou várias vezes em sonhos simbolicos de satisfação pura. Um contraponto aos piores pesadelos, aquele mar quente, cristalino, onde nadei em liberdade, num lugar perfeito em que a minha mãe parece que momentaneamente se esqueceu de ter medo. Este Setembro vou ter que voltar às Berlengas, já que estamos em maré de reencontros, de sonhos, de memórias e de esperança.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Viagem ao fim do mundo. Cirurgia da alma.

As ondas voltam uma e outra vez, o movimento do mar nunca pára. E é um mar zangado, irrascível, que não perdoa, que nos esmaga o peito e empura contra a areia até perdermos o fôlego, e depois se afasta de novo, sem sequer se voltar para dizer adeus. Deixa-nos sozinhos na praia vazia, os pés enterram-se na areia e fazemos um esforço para não cair. Sabemos, com angústia, que a onda vai voltar e que talvez será maior.Quando mais se afasta de nós, maior será a força do regresso. Fugimos ou enfrentamos? Teremos tempo para fugir? teremos força para a aguentar o seu embate sem nos aforgarmos de vez? 
Hoje, depois de conseguir com custo trepar para o cimo do pequeno anfiteatro, de ter corrido algum risco de vida quando decidi saltar para a fila debaixo apoiada numa cadeira que balança, quando finalmente as luzes se apagaram como no cinema, um certo silêncio caíu agitado e o som do microfone da sala ao lado, separada de nós por um vidro-espelho, chegou finalmente até nós, fiquei imediatamente presa da história, não um conto de fadas mas uma história estranha e longa. Tristeza infinita, como muitos conhecemos. «Senhora melancolia», como o especialista lhe chamou. De costas para nós, um «cristo cruxificado», curvado pelo sofrimento conta então o seu calvário. À medida que o conta, o fio da narrativa torna-se mais firme, mais claro. O cristo diz que não pensa, que não sabe pensar, que está confuso, que baralha tudo, mas não. O caminho está lá todo, dir-se-ia quase completo embora o «especialista» garanta mais tarde que só se aflorou a ponta do iceberg.
E o milagre acontece ali mesmo. Um homem sentado olha atentamente uma mulher desfeita. Que ainda não se decidiu se quer ficar ou partir. Que fala e fala e fala, e conta tudo. Diz que não sabe como foi apanhada pelo desejo de morte, pela doença misteriosa que diz arrastar há anos, que não sabe de nada, que esteve para enlouquecer, que enlouqueceu e que foi tomada pela doença porque «sim». Foi caindo em cima dela como uma manta de lama que pouco a pouco a envolve e se faz pesada e escura nos seus ombros, a ponto de ela já não aguentar o seu peso. Porquê?, pergunta o homem. «Não sei», responde. Ele está ali e limita-se a escutá-la e a olhá-la. Não desvia um milimetro a sua atenção, quem olha de repente diria que ele está impassivel. Pela parte que me toca, sinto que a sua presença é tão forte, que enche, inteira, a sala peqena, como o génio da lâmpada dentro da garrfa fechada, comprimido, denso no sentir e no ouvir. A magia é esta e ocorre-me que há milagres: ele escuta-a tão intensamente como provavelmente ninguem a escutou nunca. E depois talvez seja também a densidade de chumbo com que ele o faz. E a empatia. E todo o seu ser que está ali posto à disposição da mulher, o cristo pregado na cruz que de repente começa a contar coisas importantes, uma história cheia de sentido trágico, como por vezes a vida sabe ser trágica.
Aparece, claro como um cristal, o caminho de morte. Onde terá começado, onde e porquê explodiu finalmente, como se desenvolveu até ela se arrastar entre a vida e a morte. É porque ela, a mulher «cristo crucificado» foi condenada á morte, há muito tempo pela própria mãe, assm como quem não quer a coisa. e depois a morte ded facto, nunca mais a deixou. o cristo debate-se estraçalhado entre o apelo de morte mas quer viver apesar da maldição e da fúria materna. E chama-lhe santa, «a melhor mãe do mundo». Sem se dar conta, revela cada passo, cada degrau da escada que a morte foi subindo no silêncio da sua alma atormentada, e de que forma a apodreceu. A morte terrível do irmão mais novo, as guerras, os medos e os traumas que traz dentro de si, vozinhas infames que clamam incessantemente pela sua morte. Vai ficando mais leve á medida que fala. Prepara-se para sair e ir embora, mas poderia ter ficado ali a tarde inteira e eu ficaria presa das suas histórias. Com quatro ou cinco palavras o homem absolve-a da dor insuportável da culpa. Diz-lhe que se perdoe e que esqueça tudo, porque não é criminosa. Ela ouve com atenção, ela mexe-se com facilidade noutras dimensões, liga-se facilmente ao invisível e de alguma maneira é facil sonhar com  ela. Conta as suas ligações com um além benéfico, a ligação profunda que tem com o único filho, como se adivinham, como se comunicm sem palavras.
Por momento tenho a ilusão eufórica de que poderia ficar ao lado dela. Apetece-me pedir ao homem que aceda a salvar mais uma vida, só mais uma. Que a cure para que ela possa vir ainda a ser feliz, memso que só por uns tempos, só uns meses, uns anos, mas ela merecia. Mas ele deve estar cansado, já tem a sua conta de salvamentos.
Milagre imenso, é para minha a certeza da origem e da sequência quase sagrada das tragédias, dos destinos e do sentido profundo das coisas. A vida é coisa muito séria, é para ser vivida com respeito aproveitando todas as alegrias sem deixar escapar uma , sempre que possível, para esconjurar o mal e a melancolia. Há caminhos de grande sofrimento, por um lado, e há formas simples e inteiras, completas, de lhe dar uma saída, por outro. Tudo é nomeável, e isso é coisa mágica. Falamos, curamos. É só desvendar, com uma chave mágica, a sequência das coisas, saber onde tudo começou.
Saio eufórica da aula. Se acabámos de tocar um milagre desta forma tão simples e profundamente eficaz, tão humanamente cirúrgica, então tudo é possível nesta vida. Aposto na alegria. Na celebração. na redenção.
Agradeço profundamente às minhas companheiras de entusiasmo pela descoberta destes caminhos, desta compreensão sagrada da vida.








terça-feira, 10 de maio de 2011

entrar no mar ao fim do dia

Participar na vida é bom, mas vê-la seguir ao longe também tem a sua magia. estes vão entrar no mar ao fim do dia, quando as sombras caem e o sol se afunda no horizonte e tudo começa a ficar banhado de uma luz irreal, como num sonho de morte e de vida. Abençoados os aventureiros que se atrevem a entrar pelo mar adentro quando a noite está quase a cair. São guerreiros que não têm medo do que os espera e enfrentam os perigos, o desconhecido, as interrogações, os interditos, os avisos, mas preferem viver intensamente uns minutos, horas ou dias do que ignorarem o prazer de entrar assim nas águas frias ao cair do dia.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

numa sala do texas


A diferença horária entre College Station no Texas e Lisboa é de mais de seis horas, por isso, para falarmos temos que acertar a hora do encontro para aproveitar bem o tempo. Assim, aos Domingos ou aos sábados ao fim da manhã, ligamos os repectivos skypes, com as câmaras devidamente apontadas e...o milagre acontece. É o sonho transformado em realidade. Pensar que quando vivíamos em Santarém, debruçados sobre o rio Tejo, viamos filmes a preto e branco na televisão e uma das coisas que mais me fascinavam  eram os filmes futuristas em que os telefones tinham um pequeno ecrã de televisão e as pessoas ligavam-se e falavam em directo umas com as outras. Aquilo fascinava-me mas achava o fenómeno tão impossível de se tornar realidade que me obrigava a pensar que se tratava de uma loucura. Loucuras de um reliazadcor um bocado marado que gostava de imaginart impossiveis. Boa!. Adoro as supresas da vida. Tudo começou a andar muito depressa, e de repente o sonho virou mil realidades cada uma mais incrivel que a outra. Sentada descansadamente na minha sala em Lisboa, num segundo, carregando numa teclazita do computador entro numa outra sala, por sinal bem maior que a minha, que dá para um belo jardim cheio de árvores, algures numa cidade perdida no Texas. O meu companheiro de skype pega no computador e anda pela casa inteira a mostrar-me todos os cantos. Pelo caminho, encontramos a Julia, uma menina com 5 anos que de descaradinha passou a envergonhada e quando percebe que está dentro da mira do computador rasteja rapidamente para baixo de uma mesa. E o computador avança pela casa. Agora entramos num enorme quarto de brinquedos onde dois adolescentes gémeos, um rapaz e uma rapariga - me acenam com um ar amigável, é domingo de manhã e eles jogam um jogo qualquer na maior tranquilidade. Mais uma reviravolta com o computador e eis-nos de volta á cozinha, enorme, bem à americana. Grande mesa, grandes janelas de vidro até ao chão, está tudo pronto para o pequeno almoço. Ouvem-se vozes e chega a dona da casa, com quem troco os bons dias. Ela tem o cabelo a pingar porque deu umas braçadas na piscina. Temos saudades uma da outra e falamos ao mesmo tempo.Tento fazer o mesmo com o meu computador e vou ao quarto do meu filho manel que acordou particularmente mal disposto e mal abre a boca. Fico furiosa com ele, este miúdo anda parvo. O Zé já saiu para estudar fora. Desisto. Só tenho a grande árvore do adro da igreja para mostrar. Toda a gente já a viu mil vezes.
Voltamos ás respectivas salas, sentamo-nos, olhamo-nos nos olhos e começamos a falar. É o momento sagrado das revelações. Estão três quadros na parede da sala do Texas, um homem, uma mulher e uma criança. São parentes já mortos há muito. Fico de repente a saber que a mulher supostamente minha tetravó matou o marido para casar com o jardineiro. O homem, seu filho, matou a mulher brasileira num ataque de ciúmes. Ela enganou-o com outro homem, e ele decidiu abafá-la com uma almofada embebida em clorofórmio. O menino não sei quem é, esqueci-me, deve ser uma desgraçada criança da família, como uma camisa branca de folhos engomados e um casaquinho de veludo. Os seus olhinhos pretos escondem segredos e terrores. Fico a saber que os quadros foram herança tardia de um primo afastado. Bem haja, primo, esteja onde estiver, porque esta história é peça indispensável para perceber alguma coisa do nosso labirinto familiar.
Fico em estado de choque com a revelação mas depois rimo-nos ás gargalhadas. Nada de dramatismos, afinal estamos vivos e contentes. E apesar das saudades, estamos á distância de um clique - não é assim que se diz na publiivdade? - temos a cnfortável certeza que vamos continuar as histórias para a semana.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Afinal sabe bem perder o pio

Afinal gosto de ficar em silêncio e pelas melhores, mais pacificas e bondosas razões. Há bocado disse que não, não senhor, que falar é quase sempre muita bom, e quando me remeto ao silêncio é para poder usá-lo como arma de arremesso, quando a malta conversadora não vale um caracol e só diz estupidezes do caraças, e que me calo porque se falasse era para os insultar, para os denegrir, para os envergonhar, para berrar com eles, para os assassinar psicologicamente, para os deitar abaixo intrapsiquicamente, para os colocar no lugar que verdadeiramente lhes compete, que é uma capoeira que eu tenho lá no fundo do jardim. Mas não. Mais uma vez me arrependo dos meus impulsos arrogantes e das minhas conclusões radicais, e ainda do saco de dinamite que trago sempre na carteira para o que der e vier não vá irritar-me com qualquer coisinha que me desagrade, nomeadamente um monólogo muita estúpido.
Não, a verdade é que eu adoro partilhar o silêncio a dois, a três ou seja como for desde que aconteça em certas e determinadas circunstâncias, como na ...meditação, por exemplo. Acontece que tomei consciência disto agorinha memso, vinda duma dessas sessões em bela companhia, e em que se fez um silêncio de ouro, compartilhado na mais tranquila disposição que se pode imaginar. E sim, «conversámos» em silêncio. Lurdes de Castro, artista plástica, hoje com 80 anos, vive num mundo encantado algures nos Açores, numa casa de fadas. À noite, apura o ouvido e imagina a agitação das conversas intermináveis entre as raizes das árvores enterradas nas profundezas da terra escura, e que assim se cruzam, trocam, tocam e comunicam em silêncio, quando à superficie, todos dormem descansados. Assim acontece quando se adormece o corpo mas não o espírito. Em vazio e silêncio, vemos a nossa vida como um filme. Do silêncio partilhado surge uma corrente de pensamentos adivinhados pelo grupo. Cada um contribui com as suas imagens. Foi diferente (para mim) e soube-me muito bem.

Também gosto da comunicação entre inconscientes, em que não é preciso articular uma palavrinha que seja porque há canais comunicantes que as levam e trazem sem que ninguém mexa um músculo da cara. Falar sem articular palavra, sem abrir a boca, é coisa mágica e intensa. Adivinhar os pensamentos do outro assim, sem mais, e enviar-lhe outros tantos de volta, tudo no maior e mais profundo silêncio, é outra forma de viajar sem limites. Não, não é para todos. É uma coisa especial que acontece em situações especiais.

Não esquecer que há outras coisas na vida para além das «especiais». Não é preciso ser alien já nascido com dons especiais. Por mim, posso caminhar horas em silêncio à beira-mar com alguém fixe, com quem me sinta em perfeito à vontade, alguém em quem confie, que me faça sentir bem, mesmo (e sobretudo) sem palavras. Porque, diga-se a verdade, um longo passeio à beira de um mar que seja digno desse nome, furioso, zangado, imenso, um bruto mar atlântico, agreste e ameaçador, não dispensa um silêncio a sério. Nada pior que uma gralha, mesmo que seja do mais filosófico e profundo que há, que insista em falar mais alto que o mar. Aí, lá volto a deitar mão ao dinamite e vai tudo pelos ares em menos de um fósforo. Querem brincadeira, não?

procurem no fundo: Não se pode responder

procurem no fundo: Não se pode responder: "Silêncio, silêncio, silêncio. É de ouro. Sou eu que o digo e digo também que das coisas que mais gosto é de falar. Posso falar horas e horas..."

Não se pode responder

Silêncio, silêncio, silêncio. É de ouro. Sou eu que o digo e digo também que das coisas que mais gosto é de falar. Posso falar horas e horas e horas, sem quase parar de ouvir, desde que esteja com o interlocutor certo. Como é esse personagem? (deixem-me fazer mais este pequeno exercício narcisico - afinal, os blogues servem para isso mesmo e ainda para mandar mensagens encriptadas - podia ter trabalhado para os serviços secretos mas a vida não quis). Pois dizia eu que o meu interlecutor prarticamente perfeito - e felizmente tenho alguns muito, muito bons - é alguém que é inteligente, intuitivo, generoso, observador, empático, que se interessa pela vida, que é curioso, que tem objectivos, que me tem afecto, que é assertivo, atento, com cultura que baste, que goste de uma certa música, de alguns livros, de pessoas porque sim, ou seja, pela melhores razões ou apenas pela mais pura curiosidade, que tenha sentido de humor, ou seja, que possa/saiba rir á gargalhada, que tenha alguma ironia e mesmo um tudo nada de maldadezinha, que saiba ouvir e falar no momento certo. E que a nossa conversa seja assim como uma dança ao som de uma música especial. Uma coisa tipo viagem, ora suave ora alucinada, uma coisa sem fronteiras.
Depois há alguns aspectos mais «especializados» e mais raros de encontrar, e portanto de número mais restrito no grupo dos «bons interlecutores: que goste de psicologia Dinâmica. Que tenha muitos livros sobre psicanálise. Que tenha bom coração. Que seja um bocado criança e um bocado adulto. Que seja neurótico em tratamento ou já quase tratado. Pode ser um bocado histérico mas também não excluo um pequeno obsessivo. Já o fóbico faz-me um bocadinho de impressão. Não pode ser, de forma nenhuma, narcisico grave. Border-line também não é o meu género de eleição. O esquizoide sonhador esgota-me. Os neuróticos são, definitivamente, os melhores.
E que tenham muito, muito sentido de humor, um bocado ácido, um bocado infantil ou simplesmente sentido de humor, essa é definitivamente uma grande recomendação.
Estes são os interlocutores de peso. Serão três, quatro, cinco...mas são de ir ás lágrimas. Depois de uma boa e intensa conversa, adormeço profundamente até de manhã, no meu sofá da sala, com uma manta e música baixinha ou em perfeito silêncio, serenidade, fresca como uma alface. Acordo refeita, renascida. Houve encontro profundo, partilha de gémeos, troca criativa, espaços novos, viveu-se a proximidade e a verdade esteve ali mesmo .

Depois há outras caraterísticas simpáticas em interlocutores mais de passagem, mais softs, muito ou pouco próximos mas quase invariavelmente agradáveis. Podem ter todas as idades, desde os 10 aos 80 anos, ter todas as profissões, até serem um bocadinho (mas só ujm bocadinho) de direita, que são benvindos. São atentos e carinhosos, interessados, por vezes um bocado bizarros, algumas pancas, muitas vezes divertidos, a dominar assuntos vários, especialistas em economia, em gastronomia, em filosofias orientais, em futebol ou meditação, em homeopatia e produtos biológicos, em moda, em copos e piadas.Gosto. Fartamo-nos de rir. Gostamos da companhia uns dos outros pelas mais variadas razões mas o «cimento» que nos une é, sobretudo o afecto, sem mais. Amizade. Boas amizades de anos ou de meses. Mesmo que a conversa não seja «de ir ás lágrimas», mesmo que a viagem mental e emocional não seja galáctica a duzentos à hora pelo infinito fora, são belíssimos interlocutores, olu melhor, são óptimos companheiros de conversa. Encontramo-nos regularmente e com eles ningu+ém se cala embora muitas vezes não nos oiçamos uns aos outros mas isso não faz diferença nenhuma.

A única situação em que observo silêncio total, ora sorridente, ora mais grave, são aqueles que nos querem ensinar coisas, que se contradizem alegremente, que misturam alhos com bugalhos, que nos falam interminavelmente de futebol, de electrodomésticos e de automóveis, que têm sempre razão, que de repente nos metralham sem parar com as suas convicções nos mais variados campos, que dão sempre a volta por cima, que são muita «bons» no que fazem, que nada os surpreende, que têm imenso medo da crise porque «não vai haver mais subsídios de férias», que com eles «ninguém faz farinha», que se queixam amargamente da empregada, dos filhos que estão «insuportáveis», que só acreditam no que vêem, que o Salazar faz cá falta e que o desempenho do Sócrates prova que a «esquerda não resolve nada». São os que dizem que perderam «imenso» poder de compra, que o futuro vai ser dramático e aterrorizador, mas que depois acrescentam, com ar angelical e inocente, que vale a pena ir pelo menos uma vez por ano às ilhas Fiji, porque quem não as conhece não conhece nada do que é bom. Os disparates sucedem-se mas o pior é a formulação dos «problemas» isso, então, é de arrepelar os cabelos.
Silêncio, meus senhores. Nunca saberão o que penso sobre estes assuntos e outros do género. Calo-me com prazer: ninguém me pode obrigar a falar. Querem respostas? isso é que era bom!!! Responder é altamente perigo e totalmente desaconselhável.

terça-feira, 3 de maio de 2011

tarefas impossíveis: animar o inanimável

Quando fiz a minha primeira terapia há muitos anos atrás senti-me tão bem, que achei que tinha descoberto «o caminho». Tinha acessos de verdadeira sabedoria e maturidade e subitamenre as pessoas para mim deixarm de ter mistérios. fazia diagnósticos à maluca, era tudo tão fácil. Apetecia-me pegar em todos os deprimidos, os complicados, aqueles que nos trazem incansavelmente problemas sem saída, aquerles que repetem padrões de relação destrutivos, e metê-los á força em terapias, obrigá-los a falar, a confessar, a viverem explosões catárticas, a explorarem segredos, paranóias, medos, e por aí fora. «Só está mal quem quer»,pensava. e também: «quem não fala é cobarde, quem não enfrenta não tem perdão». Anos passados, até fico envergonhada: quanta ignorância, meu Deus, não há nada mais revoltante, prepotente, invasivo e arrogangte do que obrigar uma pobre velhinha a atravessar a rua porque sim, porque é melhor para ela, porque é bom para a tosse dela, e afinal os preguiçosos têm o que merecem e os medrosos também, a cobardia paga-se caro, etc, etc. Quanta arrogância e ignorãncia, meu Deus.
Se há coisa por demais importante que aprendi nestes últimos tempos é a sensatez de calar a boca perante aquilo que tomamos por «fraquezas» dos outros. Essencial ter respeito pelos seus medos, reconhecer a legitimidade e a necessidade das suas defesas. O medo pode ser um instrumento básico de sobreviência. As pessoas acham, e têm todo o direiro de acreditar nisso, que falar das suas mágoas terríveis pode desintegrá-las. Negar o sofrimento não é cobardia mas uma forma última de protecção. E todos temos direito a protegermo-nos.
Temos direito a escolher. Escolher ficar calado, escolher inventar desculpas, escolher ser «mais forte» dos que a tristeza, escolher tentar a nossa sorte e deixar que a má onda passe.
Liberdade é a única coisa que nos resta. Querer resolver os emaranhados das emoções que nos dominam ou desfazer os nós que nos torcem por dentro e compreender a «coisa», o animal selvagem que vive no fundo de cada um de nós, não nos faz heróis nem sábios especiais. Quando muito, quando decidimos (porque é de uma decisão pessoal que se trata) explorar as sombras para descobrir a luz e o sentido, podemos agradecer a sorte que nos coube. É uma sorte ter este gosto, esta mania, esta apetência, este prazer em passar para o lado de lá e procurar a chave. Uma demanda da chave preciosa que nos abre a porta da vida. Uma mania como outra qualquer que, aqui para nós, dá muito, muito jeito.
Mas, simplificando, se encontrou a sua verdade nos prazeres e lágrimas das terapias por favor não se intrometa na vida dos seus amigos deprimidos, não os aconselhe a vasculhar no seu passado, não os faça sentir estúpidos ou cobardes porque não se atrevem a assumir o sofrimento e a necessidade obvia de ajuda. Fique calado, em silêncio que acolhe e não julga. Na dúvida, o silêncio, empático e não critico, já se vê, é o remédios possível, o melhor que se pode arranjar. É proibido viver a vida dos outros. 

segunda-feira, 2 de maio de 2011

No outro lado do mundo

Um dia caíu-me nas mãos um livro de Ingrid Betancourt, estava eu muito longe de saber de quem se tratava. Era senadora na Colômbia, tinha a ingenuidade de acreditar que era possível acabar com a corrupção e o tráfico de drogas na Colômbia. Como se sentia ameçada, escreveu o livro «Com raiva no coração» e editou-o em França, onde passara toda a sua juventude. sabia que mais tarde ou mais cedo poderia ser vítima do governo colombiano. Acabou por ser sequestrada pelas FARC, em 2002. Descobri, sem querer, um site na Net de Betancourt feito pela família, amigos e apoiantes. Fiquei toda a tarde, até à noite, a explorar o site, os testemunhos, as histórias, os videos dela quando casou, quando os filhos eram pequenos, quando voltou a casar, os discursos na assembleia, os passeios de mota, as campanhas. Gosto dos sul-americanos. Têm calor e intensidade. Fiquei presa da história de Ingrid e durante anos (ela foi presa em 2002 e libertada no Verão de 2008) pensava nela obsessivamente, via e revia os testemunhos do site, os seus companheiros que iam no carro quando ela foi presa e que contam os últimos minutos antes do sequestro. Estranhei particularmente a história da secretária dela, Clara Rojas, uma mulher solteira e que insistiu em acompanhá-la no cativeiro, apesar de Ingrid lhe suplicar que se fosse embora, porque os guerrilheiros não a queriam prender. Mas Clara insistiu e acompanhou-a na selva. Estranhei. Que grande amizade. Quase como dar a vida. Meses depois apareceram as duas numa cassete divulgada pelas Farc. Ainda estavam animadas e mandavam mensagens vigorosas. Mais tarde, lembro-me de ter visto outro testemunho de Clara, desta vez sózinha, com um ar estranho, falava em bordados que fazia «para ti querida mãezinha», contava como todos os dias se levantava e rezava e tomava banho num lago, como observava os rituais de limpeza e oração e havia ali qualquer coisa que me fascinava porque tudo no seu discurso engomado e florido me cheirava a uma vaga loucura. Muito tempo depois vim a saber que a solteira Clara se tinha apaixonado por um guerrilheiro das Farc, tinha ficado grávida e o apaixonado terá sido assassinado pelos seus companheiros terroristas. Os guerrilheiros irritam-se com histórias de amor em plena selva, especialmente entre sequestradores e sequestradas. Romeu e Julieta por ali não pega. Ainda vivem no tempo dos...Flinstones(?)
 Clara deu á luz um rapaz em plena selva, no decorrer de um parto doloroso em que se conta que ela e o bebé estiveram entre a vida e a norte. A criança nasceu com um braço «partido», ela conseguiu guardá-lo uns meses junto de si, mas os guerrilheiros acabaram por lho tirar e deram o bebé a uma casal de camponeses que por sua vez o levaram, anos depois, para um orfanato em Bogotá. Quando foi finalmente libertada,Clara telefonou chorosa a agradecer a Chavez. Depois foi buscar o filho ao orfanato. Parece que tudo acabou inesperadamente bem. Benzinho, não sabemos tudo.

Entretanto, a minha imaginação fervilhava com o destino da bela Ingrid. Imaginava o que poderia uma pessoa sentir presa na selva, durante dias, meses e anos. Era romântico a assustador para mim que nunca vivi uma aventura a sério, a não ser quando decidi viajar para Londres e dividir uma casa sinistra com seis brasileiros vindos directo do interior do Brasil para o coração da capital inglesa. Dormíamos todos no chão, eles a fazerem churrasco no meio da sala, eu com a minha ropinha acabada de comprar em Lisboa a cheirar a fumo, pensando que conquistar a grande cidade era fácil. Grande ilusão meu Deus. Mas nada que se comparasse com as piranhas dos lagos onde Ingrid se banhava, com as horas sentada e acorrentada pelo pescoço, com o medo constante, a solidão, a desesperança, a depressão.
Depois, subitamente, Ingrid foi solta. E escreveu um livro com um título lindo: «Até o silêncio tem um fim». Ainda bem, fica aqui a esperança de que acabem de vez os silêncios. Amanhã há mais para quem quiser.

sexta-feira, 29 de abril de 2011

passa das duas

Dou-me conta de que os meus dias são aos altos e baixos, cada vez menos baixos, é certo, e quando isso acontece aprendi a nadar rapidamente para a superfície, enchendo os pulmões de ar para aguentar a subida. É como se me atirassem, a brincar, para dentro de água sem saber nadar e eu tenho que aprender rapidamente a subir à superfície, assim como se fosse uma espécie de jogo de morte e de vida. Assim, voltei a viver um ciclo de vida-morte-vida nestas últimas 48 horas, uma coisa que me acontece muito. Faço uns saltos repentinos para o passado em que perco o tino (parece que as coisas se repetem à exaustão até que sejam tornadas conscientes) e entro em pânico. Mas aprendi a nadar rapidamente para a superfície. Boa, grande aprendizagem, das melhores da minha vida. Fugi dessa armadilha, porque em pãnico não se pensa. Ora, depois de uma bela passagem pelo total precário à beira de um abismo deitei mão de todos os meus recuros, pensamentos bons, chamei a razão para o pé de mim, sentei-me num chão imaginário, olhei para estrelas que tenho guardadas e escolhi uma a uma, as que mais úteis me seriam. Esta para isto, esta para aquilo. O mesmo é dizer que invoquei as minhas fadas madrinhas, fiz dois ou três telefonemas, escrevi umas quantas linhas de um texto importante, tentei segurar-me e o medo foi passando. Hoje, de manhã, fui ter com uma das madrinhas. Sentámo-nos na sua mesa larga e conversámos até ficar satisfeitas. São assim as minhas fadas madrinahs. Esta tem particular bom senso. Fizemos os balanços - pedi-lhe que me ajudasse a fazê-los e assim foi. É tranquila, é feita de uma peça só, tem a cabeça e o coração na mesma medida, traz a sua história de vida com simplicidade e a segurança de quem já passou montes e vales, morreu e renasceu mais forte. E é essa conversa que permite que nos juntemos mais e mais até acertarmos o passo numa estrada sem fim. Quando a magia da amizade e da conversa se instalam em duas pessoas que gostam muito uma da outra, acontecem milagres. E hoje aconteceu mais um. Deu-me lucidez, tranquilidade e segurança. Há dias e horas perfeitas. E eu tenho o hábito de os guardar a todos e fazer um longo cordão de vida que enrolo e guardo numa caixa que trago sempre conmigo. Desenrolamos tudo, voltamos a enrolar e eu saí de lá cheia de bons conselhos, de esperança, de cumplicidades, de ideias práticas. Valeu a pena.
É incrivel a nossa capacidade de, em apenas três horas, darmos a volta inteira ao mundo, ao meu, ao dela, ao nosso, ao de todos, e depois voltamos calmamente á terra e bebemos um chá quente, de ervas. fala-se de coisas tão variadas como da nossa morte, da vida, da velhice, da infãncia, das esperanças, das descobertas que temos vindo a fazer, dos segredos que temos vindo a descobrir, das receitas de tofu, dos legumes salteados, das ervas que fazem bem á saúde, do mistério (já descoberto mas sempre fascinante) dos encontros e dos desencontros que dão sentido á nossa vida. Obrigada Rosário. Enquanto formos vivas, vamos aproveitar cada segundo, e essa é uma ideia que me faz perfeitamente feliz.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Os Belgas

Tinha medo deste mar mas foi ele que me viu nascer. Andávamos horas e horas quando a maré estava vazia, e assim chegávamos longe e estávamos fora todo o dia. O mais longe que fui não passou da praia dos Belgas, um lugar deserto, naquela altura. Uma piscina vazia perto da praia. Grandes conchas na areia, raramente pisada. Era como se chegássemos a um planeta distante, ou como se dobrássemos o Cabo da Boa Esperança. Sentávamo-nos exaustos, cheios de silêncio por todo o lado. Por essa altura a maré tinha subido e tapado o caminho de regresso. esperávamos horas que a maré baixasse. Um dia inteiro. Voltávamos com o por do sol. Um dia encontrámos um grande barco á vela que tinha encalhado na areia durante a noite. Era enorme e lembrava o príncipe que se tranformou num eucalipto à espera que uma mulher se apaixonasse por ele para que voltasse á vida e se transformasse de novo num homem. Mas claro que esse dia não chegou.  O barco branco lembrou-me o príncipe silencioso, à espera do impossível: ser salvo com um beijo de amor. Quem beija uma árvore que raramente fala? quem beija um barco com as velas rasgadas, mudo, enterrado na areia?  Um e outro perderam a esperança de serem resgatados.
Há coisas que não mudam. Vão assim pelo rio da vida abaixo.

Uma carta antiga quando tudo começou a descambar

2009 - Setembro

Já cheguei das férias há mais de 8 dias e ainda não fui ver a minha
mãe ao lar. Bem sei que é de luxo, o preço nem podes imaginar, uma
fortuna. Que mundo tão estranho este em que o único sítio do mundo em
que cuidam de ti e se preocupam a sério em fazer-te passar os últimos
dias na Terra nas melhores e mais doces condições pedem-te um preço
astronómico. Impossível morrer bem quando se tem algum dinheiro,
dinheiro médio, sei lá. Tens que ter milhares para teres acesso a
cuidados verdadeiros. Quando fui lá com o João ia sempre de noite,
antes de Agosto, em noites calmas e cheias de estrelas. Aquele lugar -
Bobadela - parece um planeta diferente deste em que vivemos. Por
momentos cheguei a imaginar que giro seria viver ali, entre
improváveis montes de relva verde, no meio de ruelas e pequenos
bosques, moradias bonitas, pintadas de fresco. Como nos bons velhos
tempos em que não acordava sistematicamente deprimida, consegui
acordar o prazer de me imaginar a entrar naquelas casas e viver outra
vida que não fosse a minha. Não sei conheces a sensação que é o prazer
e a excitação de me imaginar a entrar num mundo que não é o meu e a
ter sensações novas com gente nova, quem sabe, uma tia descontraída e
desembaraçada, bem vestida, carácter forte, protectora, um primo
moderno, um...marido? não, um marido não, porque nessa vida eu seria
ainda nova, quer dizer, madura mas nova, isto é, a caminho de uma
carreira com sucesso e quase comprometida com um namorado bem
sucedido, claro, seguro e optimista, nada de sentimentalismos. A bem
dizer, quase que estou a gostar de pessoas com pouca «alma». Nada de
choraminguices, tudo alegre, confiante, o mundo é nosso, a noite é
brilhante e claro que temos um barco e claro que saímos todos os
fins-de-semana nele, e claro que temos uma grande sala super
confortável para trabalhar. Quer dizer, gostava de ter as costas
quentes numa família optimista e bem instalada na vida. E tudo isto
numa noite de estrelas, morna, e o rio ao longe, e uma estranha
mistura de campo com um subúrbio bom e moderno, em pleno Verão e eu a
subir a rampa da clínica do Mar, um nome maravilhoso que me fez
sonhar. Numa clínica do mar preparamo-nos para morrer e entrar
devagarinho num mar morno e escuro, e tudo isto sem medo.
Eu e o João entrámos pela calada da noite e fomos procurando o quarto
pelos corredores que parecem pertencer a uma nave espacial. Mas é
disso que se trata, de uma bela nave espacial, em silêncio fresco e
refrescante, corredores longos e suavemente iluminados e eis que
entrámos no quarto da minha mãe. Parámos por segundos sem perceber bem
onde era a porta porque esta arquitectura é mesmo de excelência,
fizeram da clínica uma nave pronta a descolar para o universo. Digo eu
pobre mortal, cheia de contas por pagar mas que ali me sinto
subitamente a salvo dessas pequenezas, uma vez que estamos em plena
nave de descolagem para outro mundo e que mundo. Deve ser bom. Se for
como esta nave doce cor de salmão, se tiver quartos com portas
gigantescas, giratórias, que se abrem sozinhas sem termos que lhes
tocar, até não me importava de dizer adeus á vida. Mas não, temos
mesmo que ficar aqui mais um tempo.
Por isso entro no quarto enorme e procuro a cara da minha mãe que deve
estar ali deitada, algures. sinto sempre medo. Estar á beira do abismo
é sempre assustador. E ali está ela, de olhos fechados, pele sem
rugas, cabelo branco, a sonhar descansadamente. Calculo. Tem um luxo
nunca visto -a minha irmã ficou impressionada, contou-me depois, com
esse luxo que «não se importava nada de o ter»,confessou, entre
sorrisos. Ora bem, o que será? pois é uma televisão com um braço
articulado, quer dizer, se queres ver aquilo de mais perto, puxas até
ti, até à tua cara, estejas deitada, sentada ou a dormir. Essa
televisão tão moderna e misteriosa angustia--me sem que eu perceba
porquê.

Ela abre os olhos, parece que vem a chegar de uma viagem
inter-galáctica. é estranho, comovedor e amedronta-me. Sorri e diz umas
palavras. Eu digo outras. Ficamos por ali a rondar, eu sento-me, puxo
a televisão para outro lado, mas acabamos todos a ver um programa
cómico, em que os participantes também estão vestidos de astronautas
prateados e de vez em quando caem a uma piscina. basta de loucuras.
Voltamos ao mundo real. Ela não dá muito pelo nosso adeus mas custa-me
sempre sair dali a fingir que vamos á sala e voltamos já. Como nos
infantários, em que as crianças ficam a berrar e nós a disfarçar,
sorridentes, quando o mundo desaba por dentro. Eu era assim. O mundo
desabava quando deixava o Zézinho com um ano no infantário. na
verdade, aquilo era um infanticídio. Não há coisa mais cruel que
separar assim os filhos das mães. e não me venham com histórias «de que
foi há muito tempo» e que eles não se lembram, e que aquilo não lhes
fez mal nenhum. A infância, diz um tal de Manuel de matos, um homem
que não conheço mas que já admiro profundamente, «a infância foi há duas
horas».
Foi assim que a vi a última vez. As férias acabaram e vou ter que lá
voltar. Ai meu Deus. Bobadela, noite, uma nave espacial, ai meus Deus,
o adeus tarda e eu vou ficando cada vez mais com esta sensação de que
estou sozinha, que não tarda entro numa nave e que tudo acaba.
Realmente, muita coisa já acabou entre mim e a minha mãe, mas ainda há
este fio de vida, não sei, este fio que não há maneira de quebrar.
Teté, acho que estou a viver agora, e só agora, o tempo da quebra dos
fios. Até aqui foi a brincar. Agora é mesmo a sério. O melhor é
começar a tentar encontrar um capacete para nave espacial. Que raio de
sentimento este, sozinha como um astronauta na superfície dura da lua.
E esta? Assusto-te?
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