sexta-feira, 27 de maio de 2011

voltar ao princípio, numa praia das Berlengas

Toda a vida, desde que comecei a ser gente e a andar pela areia fora, tive o desejo imenso, irracional e desvairado de ir ás Berlengas. Ouvia falar das travessias de barco, dos ventos perigosos, da velha casca de noz que se «entornava» perigosamente, e do pessoal que corria alegremente perigo de vida, como os velhos marinheiros que se enfiavam num barco sem saber se voltavam. O mar, o gigante, a força bruta, pode ser romântico e interminável até ao horizonte mas também pode virar uma fera e dar cabo de tudo e de todos sem deitar uma lágrima.
  Agora, que olho para trás, e que já começo a ter uma ideia do lugar que o mar ocupava e ocupa na nossa vida, na minha e na do meu irmão, vejo que ele esteve lá sempre e está ainda entranhado nas nossas fundações. A minha melhor noite do ano era a noite da «chegada», quando finalmente me deitava numa cama de colchão de palha, entre lençóis húmidos e frios, a vela apagava-se e eu deixava-me ficar muito tempo a ouvir o barulho do mar que entrava por todo lado, naquelas casas impensáveis, cheias de caruncho e bolor, em que as janelas mal fechavam. e ainda bem. Ouvir o mar a falar daquela maneira é ainda uma das minhas  melhores recordações. As noites nas Azenhas, em cima de um mar imenso, são uma brincadeira ao pé do rugido do baleal by night escura. No fim do mundo, já não sabia onde acabava o mar e começava eu. E depois, a Berlenga. as berlengas.
As histórias das travessias difíceis. Depois de muito insistir, a minha mãe lá acedeu a levar-nos ás Berlengas, com um grupo de mães e crianças pequenas - lembro-me particularmento do Zé António da Nené. tenho uma fotografia em que eu, com cinco ou seis anos, o beijava à força e o miudo berrava como um doido, não sei se de medo, se de fartote, se de se birra. Sei que não ficou nada bem na fotografia: a boca toda aberta, desesperado, os dentes á mostra, o chapéu a cair, o fato de banho sem forma, um horror. Durante muito tempo pensei porque me eu teria dado ao trabalhado de beijar teimosamente semelhante criatura, ainda por cima estando ele tão contrafeito, tão furioso e ...como diria... assustado? Não mereceu, pensei anos e anos, não mereceu. Hoje olho a fotografia e sinto uma ternura imensa. Coitadinho do Zé. Era um dos meus grandes amigos. Acho que ele terá ido na viagem á Berlenga. A minha mãe apavorada, como era o seu estado normal, enfiou-nos Vomidrine, o comprimidinho amarrelo e amargo pela garganta abaixo. Era para «não enjoar». Obrigadinho. Não enjoei mas fiquei com sono e a boca amarga. Naquela altura a minha mãe enfiava-nos o que queria pela boca abaixo, desde sardinhas assadas com espinhas (porque era muito bom), até sopa de ovos com tomate e óleo de fígado de bacalhau misturados. E nós, que ignorávamos que havia lá fora um  mundo diferente, papávamos tudo sem um pio. 
A travessia ficou-me na memória. A postura da minha mãe dava a entender que a qualquer momento o barco podia naufragar, mas OK, pensava, pois que naufrague, sempre seria uma sensação diferente. O que eu mais queria era aventura. Apesar dos Vomidrine, houve alguém que vomitou. Vi uma rajada de uma papa branca a rasar-me o nariz, levada pelo vento feroz. Penso que foi a Fau mas ninguém disse nada. Também tenho a ideia de que nos deram umas sanduíches e nos ordenaram que nos sentássemos no chão para o barco não virar, especialmente lá num sitio particularmente perigoso, uma espécie de passagem da barra, tipo Barra do Inferno, em que há vagalhões à espera das nozes.
O barco passou, resistiu e ancorou. O meu coração batia mais depressa. Dei os meus primeiros passos no cimento, a cambalear com o vomidrine e o vento. Mas a ilha estava em perfeita paz. Entrei no paraíso. A sensação geral que me ficou até hoje foi de felicidade plena que atingiu o seu máximo quando descemos para esta praia, onde rapidamente se perdia o pé na água transparente. Estava «quente», a água, coisa quase impensável nas Berlengas. Mas eu lembro-me dela, de facto, pelo menos morna. Foi o meu histórico regresso ao útero, onde vivi o melhor sonho da minha vida. Passei o dia a nadar, todos a nadar, mesmo os que não sabiam, uma felicidade imensa que ficou para sempre na minha memoria e que voltou várias vezes em sonhos simbolicos de satisfação pura. Um contraponto aos piores pesadelos, aquele mar quente, cristalino, onde nadei em liberdade, num lugar perfeito em que a minha mãe parece que momentaneamente se esqueceu de ter medo. Este Setembro vou ter que voltar às Berlengas, já que estamos em maré de reencontros, de sonhos, de memórias e de esperança.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Viagem ao fim do mundo. Cirurgia da alma.

As ondas voltam uma e outra vez, o movimento do mar nunca pára. E é um mar zangado, irrascível, que não perdoa, que nos esmaga o peito e empura contra a areia até perdermos o fôlego, e depois se afasta de novo, sem sequer se voltar para dizer adeus. Deixa-nos sozinhos na praia vazia, os pés enterram-se na areia e fazemos um esforço para não cair. Sabemos, com angústia, que a onda vai voltar e que talvez será maior.Quando mais se afasta de nós, maior será a força do regresso. Fugimos ou enfrentamos? Teremos tempo para fugir? teremos força para a aguentar o seu embate sem nos aforgarmos de vez? 
Hoje, depois de conseguir com custo trepar para o cimo do pequeno anfiteatro, de ter corrido algum risco de vida quando decidi saltar para a fila debaixo apoiada numa cadeira que balança, quando finalmente as luzes se apagaram como no cinema, um certo silêncio caíu agitado e o som do microfone da sala ao lado, separada de nós por um vidro-espelho, chegou finalmente até nós, fiquei imediatamente presa da história, não um conto de fadas mas uma história estranha e longa. Tristeza infinita, como muitos conhecemos. «Senhora melancolia», como o especialista lhe chamou. De costas para nós, um «cristo cruxificado», curvado pelo sofrimento conta então o seu calvário. À medida que o conta, o fio da narrativa torna-se mais firme, mais claro. O cristo diz que não pensa, que não sabe pensar, que está confuso, que baralha tudo, mas não. O caminho está lá todo, dir-se-ia quase completo embora o «especialista» garanta mais tarde que só se aflorou a ponta do iceberg.
E o milagre acontece ali mesmo. Um homem sentado olha atentamente uma mulher desfeita. Que ainda não se decidiu se quer ficar ou partir. Que fala e fala e fala, e conta tudo. Diz que não sabe como foi apanhada pelo desejo de morte, pela doença misteriosa que diz arrastar há anos, que não sabe de nada, que esteve para enlouquecer, que enlouqueceu e que foi tomada pela doença porque «sim». Foi caindo em cima dela como uma manta de lama que pouco a pouco a envolve e se faz pesada e escura nos seus ombros, a ponto de ela já não aguentar o seu peso. Porquê?, pergunta o homem. «Não sei», responde. Ele está ali e limita-se a escutá-la e a olhá-la. Não desvia um milimetro a sua atenção, quem olha de repente diria que ele está impassivel. Pela parte que me toca, sinto que a sua presença é tão forte, que enche, inteira, a sala peqena, como o génio da lâmpada dentro da garrfa fechada, comprimido, denso no sentir e no ouvir. A magia é esta e ocorre-me que há milagres: ele escuta-a tão intensamente como provavelmente ninguem a escutou nunca. E depois talvez seja também a densidade de chumbo com que ele o faz. E a empatia. E todo o seu ser que está ali posto à disposição da mulher, o cristo pregado na cruz que de repente começa a contar coisas importantes, uma história cheia de sentido trágico, como por vezes a vida sabe ser trágica.
Aparece, claro como um cristal, o caminho de morte. Onde terá começado, onde e porquê explodiu finalmente, como se desenvolveu até ela se arrastar entre a vida e a morte. É porque ela, a mulher «cristo crucificado» foi condenada á morte, há muito tempo pela própria mãe, assm como quem não quer a coisa. e depois a morte ded facto, nunca mais a deixou. o cristo debate-se estraçalhado entre o apelo de morte mas quer viver apesar da maldição e da fúria materna. E chama-lhe santa, «a melhor mãe do mundo». Sem se dar conta, revela cada passo, cada degrau da escada que a morte foi subindo no silêncio da sua alma atormentada, e de que forma a apodreceu. A morte terrível do irmão mais novo, as guerras, os medos e os traumas que traz dentro de si, vozinhas infames que clamam incessantemente pela sua morte. Vai ficando mais leve á medida que fala. Prepara-se para sair e ir embora, mas poderia ter ficado ali a tarde inteira e eu ficaria presa das suas histórias. Com quatro ou cinco palavras o homem absolve-a da dor insuportável da culpa. Diz-lhe que se perdoe e que esqueça tudo, porque não é criminosa. Ela ouve com atenção, ela mexe-se com facilidade noutras dimensões, liga-se facilmente ao invisível e de alguma maneira é facil sonhar com  ela. Conta as suas ligações com um além benéfico, a ligação profunda que tem com o único filho, como se adivinham, como se comunicm sem palavras.
Por momento tenho a ilusão eufórica de que poderia ficar ao lado dela. Apetece-me pedir ao homem que aceda a salvar mais uma vida, só mais uma. Que a cure para que ela possa vir ainda a ser feliz, memso que só por uns tempos, só uns meses, uns anos, mas ela merecia. Mas ele deve estar cansado, já tem a sua conta de salvamentos.
Milagre imenso, é para minha a certeza da origem e da sequência quase sagrada das tragédias, dos destinos e do sentido profundo das coisas. A vida é coisa muito séria, é para ser vivida com respeito aproveitando todas as alegrias sem deixar escapar uma , sempre que possível, para esconjurar o mal e a melancolia. Há caminhos de grande sofrimento, por um lado, e há formas simples e inteiras, completas, de lhe dar uma saída, por outro. Tudo é nomeável, e isso é coisa mágica. Falamos, curamos. É só desvendar, com uma chave mágica, a sequência das coisas, saber onde tudo começou.
Saio eufórica da aula. Se acabámos de tocar um milagre desta forma tão simples e profundamente eficaz, tão humanamente cirúrgica, então tudo é possível nesta vida. Aposto na alegria. Na celebração. na redenção.
Agradeço profundamente às minhas companheiras de entusiasmo pela descoberta destes caminhos, desta compreensão sagrada da vida.








terça-feira, 10 de maio de 2011

entrar no mar ao fim do dia

Participar na vida é bom, mas vê-la seguir ao longe também tem a sua magia. estes vão entrar no mar ao fim do dia, quando as sombras caem e o sol se afunda no horizonte e tudo começa a ficar banhado de uma luz irreal, como num sonho de morte e de vida. Abençoados os aventureiros que se atrevem a entrar pelo mar adentro quando a noite está quase a cair. São guerreiros que não têm medo do que os espera e enfrentam os perigos, o desconhecido, as interrogações, os interditos, os avisos, mas preferem viver intensamente uns minutos, horas ou dias do que ignorarem o prazer de entrar assim nas águas frias ao cair do dia.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

numa sala do texas


A diferença horária entre College Station no Texas e Lisboa é de mais de seis horas, por isso, para falarmos temos que acertar a hora do encontro para aproveitar bem o tempo. Assim, aos Domingos ou aos sábados ao fim da manhã, ligamos os repectivos skypes, com as câmaras devidamente apontadas e...o milagre acontece. É o sonho transformado em realidade. Pensar que quando vivíamos em Santarém, debruçados sobre o rio Tejo, viamos filmes a preto e branco na televisão e uma das coisas que mais me fascinavam  eram os filmes futuristas em que os telefones tinham um pequeno ecrã de televisão e as pessoas ligavam-se e falavam em directo umas com as outras. Aquilo fascinava-me mas achava o fenómeno tão impossível de se tornar realidade que me obrigava a pensar que se tratava de uma loucura. Loucuras de um reliazadcor um bocado marado que gostava de imaginart impossiveis. Boa!. Adoro as supresas da vida. Tudo começou a andar muito depressa, e de repente o sonho virou mil realidades cada uma mais incrivel que a outra. Sentada descansadamente na minha sala em Lisboa, num segundo, carregando numa teclazita do computador entro numa outra sala, por sinal bem maior que a minha, que dá para um belo jardim cheio de árvores, algures numa cidade perdida no Texas. O meu companheiro de skype pega no computador e anda pela casa inteira a mostrar-me todos os cantos. Pelo caminho, encontramos a Julia, uma menina com 5 anos que de descaradinha passou a envergonhada e quando percebe que está dentro da mira do computador rasteja rapidamente para baixo de uma mesa. E o computador avança pela casa. Agora entramos num enorme quarto de brinquedos onde dois adolescentes gémeos, um rapaz e uma rapariga - me acenam com um ar amigável, é domingo de manhã e eles jogam um jogo qualquer na maior tranquilidade. Mais uma reviravolta com o computador e eis-nos de volta á cozinha, enorme, bem à americana. Grande mesa, grandes janelas de vidro até ao chão, está tudo pronto para o pequeno almoço. Ouvem-se vozes e chega a dona da casa, com quem troco os bons dias. Ela tem o cabelo a pingar porque deu umas braçadas na piscina. Temos saudades uma da outra e falamos ao mesmo tempo.Tento fazer o mesmo com o meu computador e vou ao quarto do meu filho manel que acordou particularmente mal disposto e mal abre a boca. Fico furiosa com ele, este miúdo anda parvo. O Zé já saiu para estudar fora. Desisto. Só tenho a grande árvore do adro da igreja para mostrar. Toda a gente já a viu mil vezes.
Voltamos ás respectivas salas, sentamo-nos, olhamo-nos nos olhos e começamos a falar. É o momento sagrado das revelações. Estão três quadros na parede da sala do Texas, um homem, uma mulher e uma criança. São parentes já mortos há muito. Fico de repente a saber que a mulher supostamente minha tetravó matou o marido para casar com o jardineiro. O homem, seu filho, matou a mulher brasileira num ataque de ciúmes. Ela enganou-o com outro homem, e ele decidiu abafá-la com uma almofada embebida em clorofórmio. O menino não sei quem é, esqueci-me, deve ser uma desgraçada criança da família, como uma camisa branca de folhos engomados e um casaquinho de veludo. Os seus olhinhos pretos escondem segredos e terrores. Fico a saber que os quadros foram herança tardia de um primo afastado. Bem haja, primo, esteja onde estiver, porque esta história é peça indispensável para perceber alguma coisa do nosso labirinto familiar.
Fico em estado de choque com a revelação mas depois rimo-nos ás gargalhadas. Nada de dramatismos, afinal estamos vivos e contentes. E apesar das saudades, estamos á distância de um clique - não é assim que se diz na publiivdade? - temos a cnfortável certeza que vamos continuar as histórias para a semana.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Afinal sabe bem perder o pio

Afinal gosto de ficar em silêncio e pelas melhores, mais pacificas e bondosas razões. Há bocado disse que não, não senhor, que falar é quase sempre muita bom, e quando me remeto ao silêncio é para poder usá-lo como arma de arremesso, quando a malta conversadora não vale um caracol e só diz estupidezes do caraças, e que me calo porque se falasse era para os insultar, para os denegrir, para os envergonhar, para berrar com eles, para os assassinar psicologicamente, para os deitar abaixo intrapsiquicamente, para os colocar no lugar que verdadeiramente lhes compete, que é uma capoeira que eu tenho lá no fundo do jardim. Mas não. Mais uma vez me arrependo dos meus impulsos arrogantes e das minhas conclusões radicais, e ainda do saco de dinamite que trago sempre na carteira para o que der e vier não vá irritar-me com qualquer coisinha que me desagrade, nomeadamente um monólogo muita estúpido.
Não, a verdade é que eu adoro partilhar o silêncio a dois, a três ou seja como for desde que aconteça em certas e determinadas circunstâncias, como na ...meditação, por exemplo. Acontece que tomei consciência disto agorinha memso, vinda duma dessas sessões em bela companhia, e em que se fez um silêncio de ouro, compartilhado na mais tranquila disposição que se pode imaginar. E sim, «conversámos» em silêncio. Lurdes de Castro, artista plástica, hoje com 80 anos, vive num mundo encantado algures nos Açores, numa casa de fadas. À noite, apura o ouvido e imagina a agitação das conversas intermináveis entre as raizes das árvores enterradas nas profundezas da terra escura, e que assim se cruzam, trocam, tocam e comunicam em silêncio, quando à superficie, todos dormem descansados. Assim acontece quando se adormece o corpo mas não o espírito. Em vazio e silêncio, vemos a nossa vida como um filme. Do silêncio partilhado surge uma corrente de pensamentos adivinhados pelo grupo. Cada um contribui com as suas imagens. Foi diferente (para mim) e soube-me muito bem.

Também gosto da comunicação entre inconscientes, em que não é preciso articular uma palavrinha que seja porque há canais comunicantes que as levam e trazem sem que ninguém mexa um músculo da cara. Falar sem articular palavra, sem abrir a boca, é coisa mágica e intensa. Adivinhar os pensamentos do outro assim, sem mais, e enviar-lhe outros tantos de volta, tudo no maior e mais profundo silêncio, é outra forma de viajar sem limites. Não, não é para todos. É uma coisa especial que acontece em situações especiais.

Não esquecer que há outras coisas na vida para além das «especiais». Não é preciso ser alien já nascido com dons especiais. Por mim, posso caminhar horas em silêncio à beira-mar com alguém fixe, com quem me sinta em perfeito à vontade, alguém em quem confie, que me faça sentir bem, mesmo (e sobretudo) sem palavras. Porque, diga-se a verdade, um longo passeio à beira de um mar que seja digno desse nome, furioso, zangado, imenso, um bruto mar atlântico, agreste e ameaçador, não dispensa um silêncio a sério. Nada pior que uma gralha, mesmo que seja do mais filosófico e profundo que há, que insista em falar mais alto que o mar. Aí, lá volto a deitar mão ao dinamite e vai tudo pelos ares em menos de um fósforo. Querem brincadeira, não?

procurem no fundo: Não se pode responder

procurem no fundo: Não se pode responder: "Silêncio, silêncio, silêncio. É de ouro. Sou eu que o digo e digo também que das coisas que mais gosto é de falar. Posso falar horas e horas..."

Não se pode responder

Silêncio, silêncio, silêncio. É de ouro. Sou eu que o digo e digo também que das coisas que mais gosto é de falar. Posso falar horas e horas e horas, sem quase parar de ouvir, desde que esteja com o interlocutor certo. Como é esse personagem? (deixem-me fazer mais este pequeno exercício narcisico - afinal, os blogues servem para isso mesmo e ainda para mandar mensagens encriptadas - podia ter trabalhado para os serviços secretos mas a vida não quis). Pois dizia eu que o meu interlecutor prarticamente perfeito - e felizmente tenho alguns muito, muito bons - é alguém que é inteligente, intuitivo, generoso, observador, empático, que se interessa pela vida, que é curioso, que tem objectivos, que me tem afecto, que é assertivo, atento, com cultura que baste, que goste de uma certa música, de alguns livros, de pessoas porque sim, ou seja, pela melhores razões ou apenas pela mais pura curiosidade, que tenha sentido de humor, ou seja, que possa/saiba rir á gargalhada, que tenha alguma ironia e mesmo um tudo nada de maldadezinha, que saiba ouvir e falar no momento certo. E que a nossa conversa seja assim como uma dança ao som de uma música especial. Uma coisa tipo viagem, ora suave ora alucinada, uma coisa sem fronteiras.
Depois há alguns aspectos mais «especializados» e mais raros de encontrar, e portanto de número mais restrito no grupo dos «bons interlecutores: que goste de psicologia Dinâmica. Que tenha muitos livros sobre psicanálise. Que tenha bom coração. Que seja um bocado criança e um bocado adulto. Que seja neurótico em tratamento ou já quase tratado. Pode ser um bocado histérico mas também não excluo um pequeno obsessivo. Já o fóbico faz-me um bocadinho de impressão. Não pode ser, de forma nenhuma, narcisico grave. Border-line também não é o meu género de eleição. O esquizoide sonhador esgota-me. Os neuróticos são, definitivamente, os melhores.
E que tenham muito, muito sentido de humor, um bocado ácido, um bocado infantil ou simplesmente sentido de humor, essa é definitivamente uma grande recomendação.
Estes são os interlocutores de peso. Serão três, quatro, cinco...mas são de ir ás lágrimas. Depois de uma boa e intensa conversa, adormeço profundamente até de manhã, no meu sofá da sala, com uma manta e música baixinha ou em perfeito silêncio, serenidade, fresca como uma alface. Acordo refeita, renascida. Houve encontro profundo, partilha de gémeos, troca criativa, espaços novos, viveu-se a proximidade e a verdade esteve ali mesmo .

Depois há outras caraterísticas simpáticas em interlocutores mais de passagem, mais softs, muito ou pouco próximos mas quase invariavelmente agradáveis. Podem ter todas as idades, desde os 10 aos 80 anos, ter todas as profissões, até serem um bocadinho (mas só ujm bocadinho) de direita, que são benvindos. São atentos e carinhosos, interessados, por vezes um bocado bizarros, algumas pancas, muitas vezes divertidos, a dominar assuntos vários, especialistas em economia, em gastronomia, em filosofias orientais, em futebol ou meditação, em homeopatia e produtos biológicos, em moda, em copos e piadas.Gosto. Fartamo-nos de rir. Gostamos da companhia uns dos outros pelas mais variadas razões mas o «cimento» que nos une é, sobretudo o afecto, sem mais. Amizade. Boas amizades de anos ou de meses. Mesmo que a conversa não seja «de ir ás lágrimas», mesmo que a viagem mental e emocional não seja galáctica a duzentos à hora pelo infinito fora, são belíssimos interlocutores, olu melhor, são óptimos companheiros de conversa. Encontramo-nos regularmente e com eles ningu+ém se cala embora muitas vezes não nos oiçamos uns aos outros mas isso não faz diferença nenhuma.

A única situação em que observo silêncio total, ora sorridente, ora mais grave, são aqueles que nos querem ensinar coisas, que se contradizem alegremente, que misturam alhos com bugalhos, que nos falam interminavelmente de futebol, de electrodomésticos e de automóveis, que têm sempre razão, que de repente nos metralham sem parar com as suas convicções nos mais variados campos, que dão sempre a volta por cima, que são muita «bons» no que fazem, que nada os surpreende, que têm imenso medo da crise porque «não vai haver mais subsídios de férias», que com eles «ninguém faz farinha», que se queixam amargamente da empregada, dos filhos que estão «insuportáveis», que só acreditam no que vêem, que o Salazar faz cá falta e que o desempenho do Sócrates prova que a «esquerda não resolve nada». São os que dizem que perderam «imenso» poder de compra, que o futuro vai ser dramático e aterrorizador, mas que depois acrescentam, com ar angelical e inocente, que vale a pena ir pelo menos uma vez por ano às ilhas Fiji, porque quem não as conhece não conhece nada do que é bom. Os disparates sucedem-se mas o pior é a formulação dos «problemas» isso, então, é de arrepelar os cabelos.
Silêncio, meus senhores. Nunca saberão o que penso sobre estes assuntos e outros do género. Calo-me com prazer: ninguém me pode obrigar a falar. Querem respostas? isso é que era bom!!! Responder é altamente perigo e totalmente desaconselhável.

terça-feira, 3 de maio de 2011

tarefas impossíveis: animar o inanimável

Quando fiz a minha primeira terapia há muitos anos atrás senti-me tão bem, que achei que tinha descoberto «o caminho». Tinha acessos de verdadeira sabedoria e maturidade e subitamenre as pessoas para mim deixarm de ter mistérios. fazia diagnósticos à maluca, era tudo tão fácil. Apetecia-me pegar em todos os deprimidos, os complicados, aqueles que nos trazem incansavelmente problemas sem saída, aquerles que repetem padrões de relação destrutivos, e metê-los á força em terapias, obrigá-los a falar, a confessar, a viverem explosões catárticas, a explorarem segredos, paranóias, medos, e por aí fora. «Só está mal quem quer»,pensava. e também: «quem não fala é cobarde, quem não enfrenta não tem perdão». Anos passados, até fico envergonhada: quanta ignorância, meu Deus, não há nada mais revoltante, prepotente, invasivo e arrogangte do que obrigar uma pobre velhinha a atravessar a rua porque sim, porque é melhor para ela, porque é bom para a tosse dela, e afinal os preguiçosos têm o que merecem e os medrosos também, a cobardia paga-se caro, etc, etc. Quanta arrogância e ignorãncia, meu Deus.
Se há coisa por demais importante que aprendi nestes últimos tempos é a sensatez de calar a boca perante aquilo que tomamos por «fraquezas» dos outros. Essencial ter respeito pelos seus medos, reconhecer a legitimidade e a necessidade das suas defesas. O medo pode ser um instrumento básico de sobreviência. As pessoas acham, e têm todo o direiro de acreditar nisso, que falar das suas mágoas terríveis pode desintegrá-las. Negar o sofrimento não é cobardia mas uma forma última de protecção. E todos temos direito a protegermo-nos.
Temos direito a escolher. Escolher ficar calado, escolher inventar desculpas, escolher ser «mais forte» dos que a tristeza, escolher tentar a nossa sorte e deixar que a má onda passe.
Liberdade é a única coisa que nos resta. Querer resolver os emaranhados das emoções que nos dominam ou desfazer os nós que nos torcem por dentro e compreender a «coisa», o animal selvagem que vive no fundo de cada um de nós, não nos faz heróis nem sábios especiais. Quando muito, quando decidimos (porque é de uma decisão pessoal que se trata) explorar as sombras para descobrir a luz e o sentido, podemos agradecer a sorte que nos coube. É uma sorte ter este gosto, esta mania, esta apetência, este prazer em passar para o lado de lá e procurar a chave. Uma demanda da chave preciosa que nos abre a porta da vida. Uma mania como outra qualquer que, aqui para nós, dá muito, muito jeito.
Mas, simplificando, se encontrou a sua verdade nos prazeres e lágrimas das terapias por favor não se intrometa na vida dos seus amigos deprimidos, não os aconselhe a vasculhar no seu passado, não os faça sentir estúpidos ou cobardes porque não se atrevem a assumir o sofrimento e a necessidade obvia de ajuda. Fique calado, em silêncio que acolhe e não julga. Na dúvida, o silêncio, empático e não critico, já se vê, é o remédios possível, o melhor que se pode arranjar. É proibido viver a vida dos outros. 

segunda-feira, 2 de maio de 2011

No outro lado do mundo

Um dia caíu-me nas mãos um livro de Ingrid Betancourt, estava eu muito longe de saber de quem se tratava. Era senadora na Colômbia, tinha a ingenuidade de acreditar que era possível acabar com a corrupção e o tráfico de drogas na Colômbia. Como se sentia ameçada, escreveu o livro «Com raiva no coração» e editou-o em França, onde passara toda a sua juventude. sabia que mais tarde ou mais cedo poderia ser vítima do governo colombiano. Acabou por ser sequestrada pelas FARC, em 2002. Descobri, sem querer, um site na Net de Betancourt feito pela família, amigos e apoiantes. Fiquei toda a tarde, até à noite, a explorar o site, os testemunhos, as histórias, os videos dela quando casou, quando os filhos eram pequenos, quando voltou a casar, os discursos na assembleia, os passeios de mota, as campanhas. Gosto dos sul-americanos. Têm calor e intensidade. Fiquei presa da história de Ingrid e durante anos (ela foi presa em 2002 e libertada no Verão de 2008) pensava nela obsessivamente, via e revia os testemunhos do site, os seus companheiros que iam no carro quando ela foi presa e que contam os últimos minutos antes do sequestro. Estranhei particularmente a história da secretária dela, Clara Rojas, uma mulher solteira e que insistiu em acompanhá-la no cativeiro, apesar de Ingrid lhe suplicar que se fosse embora, porque os guerrilheiros não a queriam prender. Mas Clara insistiu e acompanhou-a na selva. Estranhei. Que grande amizade. Quase como dar a vida. Meses depois apareceram as duas numa cassete divulgada pelas Farc. Ainda estavam animadas e mandavam mensagens vigorosas. Mais tarde, lembro-me de ter visto outro testemunho de Clara, desta vez sózinha, com um ar estranho, falava em bordados que fazia «para ti querida mãezinha», contava como todos os dias se levantava e rezava e tomava banho num lago, como observava os rituais de limpeza e oração e havia ali qualquer coisa que me fascinava porque tudo no seu discurso engomado e florido me cheirava a uma vaga loucura. Muito tempo depois vim a saber que a solteira Clara se tinha apaixonado por um guerrilheiro das Farc, tinha ficado grávida e o apaixonado terá sido assassinado pelos seus companheiros terroristas. Os guerrilheiros irritam-se com histórias de amor em plena selva, especialmente entre sequestradores e sequestradas. Romeu e Julieta por ali não pega. Ainda vivem no tempo dos...Flinstones(?)
 Clara deu á luz um rapaz em plena selva, no decorrer de um parto doloroso em que se conta que ela e o bebé estiveram entre a vida e a norte. A criança nasceu com um braço «partido», ela conseguiu guardá-lo uns meses junto de si, mas os guerrilheiros acabaram por lho tirar e deram o bebé a uma casal de camponeses que por sua vez o levaram, anos depois, para um orfanato em Bogotá. Quando foi finalmente libertada,Clara telefonou chorosa a agradecer a Chavez. Depois foi buscar o filho ao orfanato. Parece que tudo acabou inesperadamente bem. Benzinho, não sabemos tudo.

Entretanto, a minha imaginação fervilhava com o destino da bela Ingrid. Imaginava o que poderia uma pessoa sentir presa na selva, durante dias, meses e anos. Era romântico a assustador para mim que nunca vivi uma aventura a sério, a não ser quando decidi viajar para Londres e dividir uma casa sinistra com seis brasileiros vindos directo do interior do Brasil para o coração da capital inglesa. Dormíamos todos no chão, eles a fazerem churrasco no meio da sala, eu com a minha ropinha acabada de comprar em Lisboa a cheirar a fumo, pensando que conquistar a grande cidade era fácil. Grande ilusão meu Deus. Mas nada que se comparasse com as piranhas dos lagos onde Ingrid se banhava, com as horas sentada e acorrentada pelo pescoço, com o medo constante, a solidão, a desesperança, a depressão.
Depois, subitamente, Ingrid foi solta. E escreveu um livro com um título lindo: «Até o silêncio tem um fim». Ainda bem, fica aqui a esperança de que acabem de vez os silêncios. Amanhã há mais para quem quiser.