sexta-feira, 29 de abril de 2011

passa das duas

Dou-me conta de que os meus dias são aos altos e baixos, cada vez menos baixos, é certo, e quando isso acontece aprendi a nadar rapidamente para a superfície, enchendo os pulmões de ar para aguentar a subida. É como se me atirassem, a brincar, para dentro de água sem saber nadar e eu tenho que aprender rapidamente a subir à superfície, assim como se fosse uma espécie de jogo de morte e de vida. Assim, voltei a viver um ciclo de vida-morte-vida nestas últimas 48 horas, uma coisa que me acontece muito. Faço uns saltos repentinos para o passado em que perco o tino (parece que as coisas se repetem à exaustão até que sejam tornadas conscientes) e entro em pânico. Mas aprendi a nadar rapidamente para a superfície. Boa, grande aprendizagem, das melhores da minha vida. Fugi dessa armadilha, porque em pãnico não se pensa. Ora, depois de uma bela passagem pelo total precário à beira de um abismo deitei mão de todos os meus recuros, pensamentos bons, chamei a razão para o pé de mim, sentei-me num chão imaginário, olhei para estrelas que tenho guardadas e escolhi uma a uma, as que mais úteis me seriam. Esta para isto, esta para aquilo. O mesmo é dizer que invoquei as minhas fadas madrinhas, fiz dois ou três telefonemas, escrevi umas quantas linhas de um texto importante, tentei segurar-me e o medo foi passando. Hoje, de manhã, fui ter com uma das madrinhas. Sentámo-nos na sua mesa larga e conversámos até ficar satisfeitas. São assim as minhas fadas madrinahs. Esta tem particular bom senso. Fizemos os balanços - pedi-lhe que me ajudasse a fazê-los e assim foi. É tranquila, é feita de uma peça só, tem a cabeça e o coração na mesma medida, traz a sua história de vida com simplicidade e a segurança de quem já passou montes e vales, morreu e renasceu mais forte. E é essa conversa que permite que nos juntemos mais e mais até acertarmos o passo numa estrada sem fim. Quando a magia da amizade e da conversa se instalam em duas pessoas que gostam muito uma da outra, acontecem milagres. E hoje aconteceu mais um. Deu-me lucidez, tranquilidade e segurança. Há dias e horas perfeitas. E eu tenho o hábito de os guardar a todos e fazer um longo cordão de vida que enrolo e guardo numa caixa que trago sempre conmigo. Desenrolamos tudo, voltamos a enrolar e eu saí de lá cheia de bons conselhos, de esperança, de cumplicidades, de ideias práticas. Valeu a pena.
É incrivel a nossa capacidade de, em apenas três horas, darmos a volta inteira ao mundo, ao meu, ao dela, ao nosso, ao de todos, e depois voltamos calmamente á terra e bebemos um chá quente, de ervas. fala-se de coisas tão variadas como da nossa morte, da vida, da velhice, da infãncia, das esperanças, das descobertas que temos vindo a fazer, dos segredos que temos vindo a descobrir, das receitas de tofu, dos legumes salteados, das ervas que fazem bem á saúde, do mistério (já descoberto mas sempre fascinante) dos encontros e dos desencontros que dão sentido á nossa vida. Obrigada Rosário. Enquanto formos vivas, vamos aproveitar cada segundo, e essa é uma ideia que me faz perfeitamente feliz.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Os Belgas

Tinha medo deste mar mas foi ele que me viu nascer. Andávamos horas e horas quando a maré estava vazia, e assim chegávamos longe e estávamos fora todo o dia. O mais longe que fui não passou da praia dos Belgas, um lugar deserto, naquela altura. Uma piscina vazia perto da praia. Grandes conchas na areia, raramente pisada. Era como se chegássemos a um planeta distante, ou como se dobrássemos o Cabo da Boa Esperança. Sentávamo-nos exaustos, cheios de silêncio por todo o lado. Por essa altura a maré tinha subido e tapado o caminho de regresso. esperávamos horas que a maré baixasse. Um dia inteiro. Voltávamos com o por do sol. Um dia encontrámos um grande barco á vela que tinha encalhado na areia durante a noite. Era enorme e lembrava o príncipe que se tranformou num eucalipto à espera que uma mulher se apaixonasse por ele para que voltasse á vida e se transformasse de novo num homem. Mas claro que esse dia não chegou.  O barco branco lembrou-me o príncipe silencioso, à espera do impossível: ser salvo com um beijo de amor. Quem beija uma árvore que raramente fala? quem beija um barco com as velas rasgadas, mudo, enterrado na areia?  Um e outro perderam a esperança de serem resgatados.
Há coisas que não mudam. Vão assim pelo rio da vida abaixo.

Uma carta antiga quando tudo começou a descambar

2009 - Setembro

Já cheguei das férias há mais de 8 dias e ainda não fui ver a minha
mãe ao lar. Bem sei que é de luxo, o preço nem podes imaginar, uma
fortuna. Que mundo tão estranho este em que o único sítio do mundo em
que cuidam de ti e se preocupam a sério em fazer-te passar os últimos
dias na Terra nas melhores e mais doces condições pedem-te um preço
astronómico. Impossível morrer bem quando se tem algum dinheiro,
dinheiro médio, sei lá. Tens que ter milhares para teres acesso a
cuidados verdadeiros. Quando fui lá com o João ia sempre de noite,
antes de Agosto, em noites calmas e cheias de estrelas. Aquele lugar -
Bobadela - parece um planeta diferente deste em que vivemos. Por
momentos cheguei a imaginar que giro seria viver ali, entre
improváveis montes de relva verde, no meio de ruelas e pequenos
bosques, moradias bonitas, pintadas de fresco. Como nos bons velhos
tempos em que não acordava sistematicamente deprimida, consegui
acordar o prazer de me imaginar a entrar naquelas casas e viver outra
vida que não fosse a minha. Não sei conheces a sensação que é o prazer
e a excitação de me imaginar a entrar num mundo que não é o meu e a
ter sensações novas com gente nova, quem sabe, uma tia descontraída e
desembaraçada, bem vestida, carácter forte, protectora, um primo
moderno, um...marido? não, um marido não, porque nessa vida eu seria
ainda nova, quer dizer, madura mas nova, isto é, a caminho de uma
carreira com sucesso e quase comprometida com um namorado bem
sucedido, claro, seguro e optimista, nada de sentimentalismos. A bem
dizer, quase que estou a gostar de pessoas com pouca «alma». Nada de
choraminguices, tudo alegre, confiante, o mundo é nosso, a noite é
brilhante e claro que temos um barco e claro que saímos todos os
fins-de-semana nele, e claro que temos uma grande sala super
confortável para trabalhar. Quer dizer, gostava de ter as costas
quentes numa família optimista e bem instalada na vida. E tudo isto
numa noite de estrelas, morna, e o rio ao longe, e uma estranha
mistura de campo com um subúrbio bom e moderno, em pleno Verão e eu a
subir a rampa da clínica do Mar, um nome maravilhoso que me fez
sonhar. Numa clínica do mar preparamo-nos para morrer e entrar
devagarinho num mar morno e escuro, e tudo isto sem medo.
Eu e o João entrámos pela calada da noite e fomos procurando o quarto
pelos corredores que parecem pertencer a uma nave espacial. Mas é
disso que se trata, de uma bela nave espacial, em silêncio fresco e
refrescante, corredores longos e suavemente iluminados e eis que
entrámos no quarto da minha mãe. Parámos por segundos sem perceber bem
onde era a porta porque esta arquitectura é mesmo de excelência,
fizeram da clínica uma nave pronta a descolar para o universo. Digo eu
pobre mortal, cheia de contas por pagar mas que ali me sinto
subitamente a salvo dessas pequenezas, uma vez que estamos em plena
nave de descolagem para outro mundo e que mundo. Deve ser bom. Se for
como esta nave doce cor de salmão, se tiver quartos com portas
gigantescas, giratórias, que se abrem sozinhas sem termos que lhes
tocar, até não me importava de dizer adeus á vida. Mas não, temos
mesmo que ficar aqui mais um tempo.
Por isso entro no quarto enorme e procuro a cara da minha mãe que deve
estar ali deitada, algures. sinto sempre medo. Estar á beira do abismo
é sempre assustador. E ali está ela, de olhos fechados, pele sem
rugas, cabelo branco, a sonhar descansadamente. Calculo. Tem um luxo
nunca visto -a minha irmã ficou impressionada, contou-me depois, com
esse luxo que «não se importava nada de o ter»,confessou, entre
sorrisos. Ora bem, o que será? pois é uma televisão com um braço
articulado, quer dizer, se queres ver aquilo de mais perto, puxas até
ti, até à tua cara, estejas deitada, sentada ou a dormir. Essa
televisão tão moderna e misteriosa angustia--me sem que eu perceba
porquê.

Ela abre os olhos, parece que vem a chegar de uma viagem
inter-galáctica. é estranho, comovedor e amedronta-me. Sorri e diz umas
palavras. Eu digo outras. Ficamos por ali a rondar, eu sento-me, puxo
a televisão para outro lado, mas acabamos todos a ver um programa
cómico, em que os participantes também estão vestidos de astronautas
prateados e de vez em quando caem a uma piscina. basta de loucuras.
Voltamos ao mundo real. Ela não dá muito pelo nosso adeus mas custa-me
sempre sair dali a fingir que vamos á sala e voltamos já. Como nos
infantários, em que as crianças ficam a berrar e nós a disfarçar,
sorridentes, quando o mundo desaba por dentro. Eu era assim. O mundo
desabava quando deixava o Zézinho com um ano no infantário. na
verdade, aquilo era um infanticídio. Não há coisa mais cruel que
separar assim os filhos das mães. e não me venham com histórias «de que
foi há muito tempo» e que eles não se lembram, e que aquilo não lhes
fez mal nenhum. A infância, diz um tal de Manuel de matos, um homem
que não conheço mas que já admiro profundamente, «a infância foi há duas
horas».
Foi assim que a vi a última vez. As férias acabaram e vou ter que lá
voltar. Ai meu Deus. Bobadela, noite, uma nave espacial, ai meus Deus,
o adeus tarda e eu vou ficando cada vez mais com esta sensação de que
estou sozinha, que não tarda entro numa nave e que tudo acaba.
Realmente, muita coisa já acabou entre mim e a minha mãe, mas ainda há
este fio de vida, não sei, este fio que não há maneira de quebrar.
Teté, acho que estou a viver agora, e só agora, o tempo da quebra dos
fios. Até aqui foi a brincar. Agora é mesmo a sério. O melhor é
começar a tentar encontrar um capacete para nave espacial. Que raio de
sentimento este, sozinha como um astronauta na superfície dura da lua.
E esta? Assusto-te?
--

Bom dia, outra vez.

Bom, vamos deixar o mergulho e os sentimentalismos para outro dia mais propício. Agora fiquei subitamente muito feliz, conversas na rede, de repente, assim, sem mais nem menos, ainda bem que nasci neste tempo, quer dizer, ainda bem que vivi o suficiente para chegar aqui e assitir a todo este milagre de comunicação instantânea e á distância. Parece coisa de magia, aqui e agora, já, já, em conversa direta com as pessoas que gosto, e assim fica mais fácil, tudo junto num só momento, e as palavras correm e fazem-nos rir. Amanhã, ao pé do rio. Amanhã, sol e planetas, ângulos, trânsitos, adivinhas, os textos e as ideias, as histórias, um milhão de histórias por segundo, como vai ser amanhã, e depois de amanhã?. Como? Como?
Fecho de ciclo, lento fecho de ciclo, e as coisas acontecem encadeadas umas nas outras, ou será que estou mais desperta para identificar coincidências? As viagens ao passado. O passado que volta de tantas formas e que se mostra como nunca se mostrou.
A isto eu chamo sorte. De poder ver alguma coisa que estava na sombra. No meu sotão há uma grande mala velha com cartas, com sacos e sacos de cartas da minha avó e os meus níveis de ansiedade e prazer sobem só de antecipar as tardes maravilhosas que vou passar sentada no chão cheio de pó, com a luz da janela pequena a descer oblíqua sobre os meus ombros, a alumiar as cartas da vovó Júlia. Querida avó, tão neurótica, tão angustiada, acho que saí á vovó dos olhos azuis: «um azul e outro verde», dizia ela, trinfante e a querer impressionar-me.
Hoje, ao ler uns papers sobre narcisismo, descobri que o amor da minha vovó - que por acaso foi redentor e teve papel fundamental na minha sobrevivência, era assim a modos que um pouco narcísico condicionante.
 Envergonhava-me quando mandava parar as pessoas na rua e lhes perguntava com um pouco de arrogância, teatralidade e despudor: «não acham que esta minha neta é a cara da Elizabeth Taylor?». E as pessoas, coitadas, diziam, balbuciavam que sim, que sim senhor, que era «muito parecida». Eu corava, entre o contente e orgulhosa, envergonhada, sabia que as pessoas lhe davam razão porque ela as obrigava. Mas no fundo ficava contente. Ela, descubro agora, gostava de mim porque eu me parecia com a Elizabeth Taylor. Lindo. Se fosse muita feia pergunto-me se a admiração seria assim tanta. Mas sim, ela gostava de mim. Já o meu avô narcisava-se de modo diferente, positivamente. Gostava de mim sem uma única condição que fosse. É bom ser assim gostada. é muito bom. Foi esse afecto que guardei na caixa do tesouro, não foi?Consegui salvá-lo da casa caótica e meti-o dentro de um buraco em forma de pequeno caixão. Tempo depois, quando a casa foi abaixo, fui lá buscá-la, à caixa.

Eu tenho a mania do passado, principalmente daquele passado enterrado num lago transparente nas bordas e escuro no meio. Não sei se sonhei - e acho que talvez - que mergulhava nesse lago que era gelado nas bordas e quente no meio, um sonho entre muitos e eu agora tenho mesmo a mania dos sonhos. Pois o Fernando diz que tentou procurar no fundo da água e não viu nada e eu digo-lhe que é preciso habituar os olhos à escuridão das águas profundas. Quando nos habituamos, as sombras fazem-se objectos, histórias, vozes e acontecimentos. É preciso ficar lá em baixo um tempo para que as sombras se transformem.
Mas há quem não se interesse por isso. Manias são manias. E cada um tem as suas.

Lembro-me do dia em que eu e o meu avô estávamos a pescar sentados à beira do rio. Um peixe grande mordeu no seu anzol e a cana dobrou-se com o peso. Fui ajudá-lo. Ele transpirava de calor e de excitação. Estava muito feliz. O peixe puxava e ele também, e eu desajeitada ajudei-o a agarrar a cana, depois fui buscar um balde e depois...não sei como aconteceu mas o peixe soltou-se e fugiu.
Ainda hoje sinto o desgosto do meu avô. Ficou desiludido como uma criança, ia chorando. Lembro-me sobretudo do esforço que ele fez para não se zangar comigo. Nunca tive uma tão grande prova de amor. Desiludido de morte, disse-me baixo: «não faz mal, deixa». Só tinha olhos para mim.

terça-feira, 26 de abril de 2011

Procurem no fundo, não desistam.

Procurem no fundo. No fundo dos fundos. No fundo do lago estão respostas.
Procurem no Fundo nasceu em 26 de Abril de 2011 às 11 da manhã em ponto, em Lisboa, num sala em frente do adro da Igreja de Santos, em plena Primavera, com uma árvore enorme a espreitar pela janela, cheia de luz e de folhas novas. Viva a Vida. Mas primeiro, procurem no fundo de nós. Do lago que está dentro de nós.