domingo, 25 de agosto de 2013

25 de agosto de 2013


lua cheia, lua cheia, lugares e desgostos, surpresas e estados de choque.
Entre o turbilhão, esta necessidade de um panorama de fundo, uma viagem rápida ao passado até agora, como uma super viagem interplanetária, viagem na máquina do tempo e aqui estou. Tudo se passou rápido e tudo faz sentido.
Então nasço num fim de tarde que imagino frio, em estado de aflição numa correria do Tramagal para Abrantes. Nunca explorei esse bocado da minha vida, a minutos de entrar no mundo do oxigénio, de ver a luz do planeta terra, numa aldeia perdida algures. E sim, quando tirei o capacete do liquido amniótico e me livrei da peles sangrentas da placenta, os «meus olhos foram sugados para o espaço», como dizia o astronauta boneco dos filmes dos meus filhos pequenos, que eu tanto amava. E eis que deve ter sido na maior aflição. Uma correria angustiada para o hospital. eu eu? aos tombos num útero contraído, aterrorizado e distraído, para não dizer hostil.
Porque agora sim, de longe, pela primeira vez, neste quase ultimo virar da minha vida, já consigo imaginar e reconstituir de longe o ambiente, o contexto, a tensão, o medo e a ansiedade desencabrestada desta minha família de doentes emocionais.Fazê-lo ficou subitamente fácil, e preciso é uma dose eterna de paciência e refazer todo o caminho como se tricotasse um cobertor eterno, eternamente. 
Até onde foi a dor e o abuso é o que menos interessa agora, isso seria pegar no bisturi e não é disso que se trata agora.
Assim, nasci e puseram-me a dormir no alto de um berço de um pé só que, como me contaram, se virou a meio da minha primeira noite por impulso da minha avó que tanto me amou, de maneira doente é certo, ou seja - sem esconder o seu lado depressivo de mim. Não sabia que isso fazia mal às crianças. assim, afogava-nos em pânicos, pessimismos e medos. Revoltas,tristezas e queixumes,  também. E sim, lembro-me que ela acordava angustiada. com um cão a saltar-lhe à garganta. Também tenho um cão desses- chama-se Fiel, em honra do cão perdigueiro do meu avô.
Passou.
Pelo que vejo nas fotografias e à medida que fui desenterrando as minhas hidras em lugar adequado, não fui «feliz» na minha infância que em vez de ser dourada foi escura, foi sombria, foi...como? Lembro-me do mar e da areia e das rochas como lugares de euforia silenciosa, deliciosa, tranquila e quente. Essas são as minhas melhores memorias de sempre e pergunto-me em que pensava eu nessas alturas, cujas memórias eu acordo agora tão facilmente. Pensamentos de calma e surpresa, lembro-me do roncar do avião à hora da sesta, e da felicidade imensa que isso me causava antes de adormecer perfeitamente feliz. 
Vejo-me a andar na varanda do hotel, o meu pai chama-me da janela e tira-me a fotografia de que eu mais gosto. Eu, no meu vestido azul escuro, tão em sossego, o mar por todos os lados, o cheiro das algas.

Passaram turbilhões de anos, aos altos e baixos, como um carrossel imprevisível. cheia de pensamentos desordenados. Às vezes sentava-me e escrevia e ainda hoje me surpreendo quando vejo que alinhava duas ideias.
Depois veio o tempo melhor. os filhos que eu julgava que nunca iria ter. as fraldas, o leite, as conversas e a pele quente macia dos seus corpinhos e o seu olhar. quando me olhavam, inocentes, transparentes, com aquela transparência divina que as crianças têm. Quando olham para nós trazem todas as memorias do universos, trazem milhões de anos de amor, de esperança,. de confiança, de saber e de curiosidade.

Não é o amor dos pais que é incondicional, que ideia mais estupidametne feita. O amor dos pais pelos filhos está inevitavelmente poluído pelas suas longas histórias sombrias. Incondicional e total, e verdadeiro é o amor dos filhos pelos pais. esse sim, é o mais incondicional dos incondicionais. 

Hoje, o melhor que o olhar me dá são as crianças que pululam na cidade.

São pequenas, umas magrinhas, outras mais gorduchas, os chapéus, as sandálias, as perninhas que andam assim, como se pisassem Vénus ou Marte, com cuidado e espanto. E os olhos, o olhar que erguem para os pais, as tias, as avós, os irmãos mais velhos. perguntam, solicitam, confiam, acreditam.- Muitas vezes choram de espanto e dor quando levam um estalo sem saber porquê ou porque não. 
às vezes vão tristes, de noite, cansadas, elas com bonecas, elas com carrinhos ou bolas a fingir. Vão cansadas porque os pais não se importam que seja tarde, e não lhes passa pela cabeça que elas precisem de colo.
Têm olheiras umas vezes, outras vezes riem-se e brincam com os irmãos.
Uma menina gordinha anda de patins a alta velocidade em frente à Assembleia e os polícias sorriem.
Ontem, na esplanada ao lado do ISEG, ao sol quente de Agosto, duas irmãs vestidas de igual brincavam com a mãe.  Faziam um jogo e a mãe fingia que era um robô. andava como um robô, e as miúdas riam. E a mãe atravessava o jardim e andava como um robô. e elas chamavam-na de longe e riam.  
Passou tanto tempo.
passou tanto tempo. Passou tanto tempo e agora vamos virar uma nova curva da vida.









sexta-feira, 3 de maio de 2013

Uma nau no fundo do céu


Não costumo ver muito o meu irmão, não vive perto, foi para longe, o miúdo. Veio a Lisboa por via das naus, e aí está ele, microfone na mão, e nós, irmãs, encantadas, a vê-lo «evoluir» no palco, como se diz. E ele evolui bem, diga-se de passagem, isto é, parece que nasceu - e nasceu - para falar num palco das suas naus bem amadas. Poderia ser sobre uma coisa qualquer porque ele tem o dom da palavra. Lindo, o dom da palavra. aquela forma mágica de lançar palavras, encadeá-las, fazer rir a plateia que está presa delas, fazer uma declaração de amor a uma senhora que o escuta e o elogia, sentada nas filas da frente. A senhora tem olhos de águia, é bonita no seu cabelo branco e também ela solta na palavra, descontraída, inteligente. Continua assim um «namoro» antigo, trabalharam juntos e admiram-se. Sentadas a unas metros, as manas encantam-se. Por momentos, sonho estar também em cima do palco, com ele. Narcisismo, diz-me a minha irmã, fantasias de narcisismo. Pois. Temos todos um quê de narcisismo, temos muito mais coisas, é certo, mais dinâmicas complexas, tortuosas, sombrias umas, frescas outras, temos essa mania de fazer inventários de memórias, agora mais do que nunca talvez porque os anos passaram tão depressa que, de repente, muito das nossas vidas já é «história». Uma história simples, como a de toda a gente, mas animada de dramas verdadeiros e muito entusiasmantes.
Com a idade passei a gostar deste nosso lado emocional que vira mesas com raivas, ódios, amores, gritos, risos, ranger de dentes, lágrimas, arrepelar de cabelos e gargalhadas de vampiro, histéricas, tipo explosão de granadas de mão num exercício de prazer inegualável. Quando nos vemos ao espelho vemos uma família mista de ciganos, mexicanos e italianos. Muita pimenta e muita lágrima, muita intensidade.
Temos, vejo com alegria, um grande pendor para a viagem analítica. Desculpem, mas não sei viver sem esta palavra e não é arrogância nem assomo de intelectualidade. É paixão pura. Abrir o alçapão que nos leva à cave das origens ou subir as escadas para o sótão cheio de teias de aranha é a mais saborosa das aventuras. Gosto de chorar, acreditem. Nada melhor do que sentir as lágrimas a subirem do coração ou seja lá onde elas se escondem, até à garganta,e  de lá aos olhos, e assim afogar-me em soluços como se fosse morrer de desgosto apunhalante meia hora depois. Mas não, qual o quê! Depois de uma boa tarde de choro, o sono é pesado e doce, e de manhã, a minha pele brilha, perfeita. Deixei cair mais uma pele de serpente, seca e gasta, na curva do caminho.
Melhor do que chorar só mesmo rir até cair, e a isso, nós também brincamos muito: a ver quem ri mais.
Ora, como se manifesta o amor do meu irmão pela psicanálise, de que, secretamente e às escondidas, porque tem medo das minhas fúrias, se ri silenciosamente? - despreza-a um pouco, mas ele sabe, ele sabe de tudo, mas já se esqueceu que sabe. E tanto assim é que o gosto pelo caminho que o leva ao fundo de si mesmo foi o caminho das naus, das naus que nos levaram à Índia.
Acho graça ver, da plateia onde estou, a maneira como ele acabou por se dedicar á tarefa preferida da família (salvo raras e legitimas excepções): ir fundo, ir mais fundo, ver o que se esconde no fundo do mar, da água, da água  transparente e gelada do Atlântico, digamos... do Baleal, o ancoradouro das nossas almas de criança.
Foi lá que realmente aprendemos a mergulhar, é desse tempo que as minhas e as suas memórias nos vêm visitar. Ele mergulha literalmente ao fundo escuros dos mil mares por onde tem andado. E depois constrói naus em madeira imaginada, como se construísse a sua vida. Eu parti daquele cais romano numa enseada perdida no forte do Baleal. Ele gosta de canhões de ferro. Eu uso os canhões para imaginariamente disparar sobre a multidão. Ele refaz em 3D o mundo interior e complexo de uma nau. Pegou num fio e diz que vai seguir esse fio até à reconstituição da vida dos homens que navegavam na nau. Grandes planos, meu irmão! Refazer o barco da grande viagem, refazer os ventos que sopravam nas suas velas, atravessar o mundo e descobrir o segredo. O segredo de quem somos.
O meu irmão tem uma nave no fundo do céu que o levará à Lua. Em terra, espero que ele volte dessas grandes viagens e me conte tudo, enfim.