sábado, 11 de junho de 2011

onde nos levam as correntes

quem somos? somos o que fazemos, o que dizemos sem pensar, o que pensamos sem saber, o que amamos, por onde vamos, para onde vamos, o que sonhamos, como nos enraizamos, como voamos, como nos entregamos. No Baleal, há muitos anos, sentava-me em cima das rochas e ficava a olhar o mar lá no fundo, verde, verde escuro,verde mais claro, a espuma, depois outra vez verde escuro, depois o barulho da água funda a bater nas rochas. Naquelas estranhas rochas inclinadas, cinzentas, cortantes, meio enterradas na ágvua verde escura e funda. O meu pai contou-me que a ilha inclinada em talhadas era consequência de um terramoto, maremoto, vulcão, não sei. Acho que do fundo do mar se abriu um buraco enorme e deitou em jacto uma massa cinzenta a ferver e que esta caiu aos bocados no mar, como filas e filas de sanduiches de pedra. Ou então, a ilha estava sossegada no meio do mar, e a terra tremeu no fundo dos fundos e a ilha abanou, estremeceu, baralhou-se e «voltou-se», inclinou-se e assim ficou para sempre em fatias imensas, a entrarem na água escura em viés. Não sei porquê, mas aquela coisa da ilha entrar inclinada no mar emocionava-me ao máximo. Ficava ali horas e horas a ver as «fatias» perderem-se no verde das ondas, a imaginar esse primeiro tempo dos tempos, em que nada existia. E numa noite, subitamente, a ilha caiu de costas, mergulhou entortada. Milhares de anos depois, ali estava eu a olhar. Ainda estava tão longe de tudo. Ainda estava tudo para começar. Um dia uma mulher ia no barco com o marido marinheiro e o ferro com que apanhavam os chocos e os percebes caiu ao mar, sem que ela fosse a tempo de o agarrar. Ouviu-se um grande borborinho na ponta da ilha: a mulher atirara-se ao mar para salvar o ferro enorme. Estava toda vestida e o peso da roupa puxava-a para baixo - ela mal sabia nadar mas não largou o ferro. Cá em cima das rochas, as pessoas juntavam-se e pediam-lhe que o largasse para não ir para o fundo com ele. mas ela não ouvia nada, jurou que não o largava e ia avançada no abismo verde escuro gelado, sem largar o ferro comprido, o vestido agarrado às pernas, com os limos negros a prenderem-lhe as braçadas. Alguém lhe deitou uma mão e ela acabou por subir para o barco. Estava exausta, encharcada, o cabelo a pingar.
Pensei quanta coragem era preciso ter para mergulhar assim naquele mar tão intenso, tão selvagem, mas a mulher era da terra, vivia ali há muito tempo e estava habituada às agruras da vida, ao sol que lhe queimava a pele, ao sal que lhe gretava a boca, ao cabelo que se colava ao pescoço com a humidade da maresia. Tive medo por ela e por mim. Imaginei-me no lugar dela, pensei que às vezes não há saída e que a vida é dura e não há como fugir aos confrontos com o mar agreste que quase nos leva a vida. Muitas vezes não há mais nada a fazer senão mergulhar e arriscar tudo, sem ter tempo para pensar. Somos empurrados para a frente. Somos mais verdadeiros e inteiros, estamos mais perto de nós, em situações limite. Quando tudo corre bem, não temos grande intensidade. Arrastamo-nos agradavelmente entre duas chávenas de chá, uma torrada, duas conversas, umas brincadeiras e risos, tudo rola porque a vida é fácil,e ás vezes é tão fácil que nos fartamos da facilidade e inventamos insuportáveis dificuldades, coisas absurdas e pequenas, irrisórias, frivolidades imensas, confortos mornos que nos roubam a alma.
Quando sem querer caímos do barco e mergulhamos nos abismos verdes e gelados, e o mundo se vira do avesso, agimos como um todo, em bloco. É o momento do tudo ou nada. Tudo o que não é verdadeiramente importante fica para trás. Ficamos mais perto do centro, somos mais nós, levados às cegas pelas correntes da água. É a altura de nos entregarmos, voarmos, deixarmos os pensamentos terem vida própria, livres e nos levarem onde nos leva a liberdade.
Pensando bem, tudo isto é verdade, mas hoje gosto de me sentir a salvo, quentinha, na sala, a escrever o que me vem á cabeça, como se o mundo coubesse aqui dentro da minha sala. O mar, ao longe. A luta que espere. Hoje vou dormir descansada. Amanhã, veremos. Ainda vem longe.

domingo, 5 de junho de 2011

Aventuras no piscinão

saio com uma amiga para votar, descemos lentamente a rua da Esperança, um nome lindo para se dar a uma rua, a uma filha, a um projecto, não sei, está calor e nestes Domingos quentes é bom conversar descansadamente rua abaixo e eis que entramos no lugar dos votos. Mesas, pessoas e papel. Aí vai ele, o meu voto. Muito gosto eu de votar. Hoje, sabe-me a amargo, este voto quase inútil, que cai numa caixa sem fundo, sem projectos, sem esperança, de repente, se me puser a pensar no processo fico meio morta de tão cansada porque sei que não há força suficiente para mudar nada. Não gosto de tiradas pessimistas mas imagino-me do tamanho duma formiga a empurrar um planeta que pesa chumbo até à eternidade. Melhor é votar na minha vida e na das pessoas de quem gosto. De volta, decidimos tomar um pequeno almoço descansado, sentadas, num café da «esquina» que não é de esquina, e assim foi. Mal tinha posto um pézinho no degrau da entrada e eis que me acena um braço amarelecido, o que me preocupa logo. Egoísta, fria e má. Atrás do braço vem aquela carinha toda pintada de fresco, com umas pestanas impensáveis, longuissimas, o cabelo com riscas roxas entremeadas com castanhas, armado como uma rocha que nunca estremece, o baton castanho a brilhar, os óculos quadrados, a roupa cheia de cor....Começa a acenar freneticamente, há poucas mesas livres, eu e a minha amiga olhamo-nos preocupadas. Era só um pequeno almoço descansado, uns dedinhos de conversa. E a dona do braço:«Ana, Ana, Ana, Ana.......». Tarde para recuar e também não há muitos cafés abertos. Velhacas, vamos ao balcão pedir os cafés enquanto olhamos rapidamente em volta à procura de um lugar vago. «Colamo-nos» a uma casal numa mesa dupla e bebemos o café afundadas na chícara, na esperança - outra vez a maldita esperança - de dissuadir o invasor. Eis que ouvimos uns passinhos miudos e arrastados, e aí vem ela, de moldura de retratos na mão, muito contente: «adivinhem quem é?». Terror, conheço-a há anos e anos e esqueci-me do nome. Este medo é disparatado, é culpa pura. Aponto a medo para a fotografia da esquerda e ela diz que «sim, sou eu..». E do outro lado? «o homem da minha vida...», diz com ar intenso. Quando lhe ia a responder «o seu marido», ela adianta-se. «O meu filho, um homem que sempre foi lindo e se aqui estava lindo, agora está cada vez mais bonito». Ah pois. Já me lembro. Detesta a nora, que «é má, má, má». Ya, belo Édipo, dona Flor, desgraçado do puto, o que havia de lhe acontecer. O marido morreu, a nora é má, o filho «é um santo», as netas têm medo da avó. Nada mais «prático» do que uma boa teoria. É chapado. O filho único e lindo, fardado de oficial da marinha, estraçalhado entre duas mulheres sem um pai que o proteja. Se é que algum dia o protegeu. Vicissitudes, dizem, vicissitudes. E ela continua: «jornalista, como eu gostava de ter sido jornalista!». Calculo, acredito profundamente e lamento-a. «Mas a minha mãe proibiu-me, e eu desisti do que mais gostava». Eu a a minha amiga olhamo-la contristadas, em silêncio. «Ou então..», continua...«ai...como é que se diz? agente secreta da Judiciária». Percebo-a bem, respondo. É verdade. também era um dos meus muitos sonhos delirantes «do porvir». De novo as vicissitudes. Levantamo-nos ás arrecuas, pagamos, dizemos-lhe adeus, «um bom Domingo....dona....». Grita do fundo: «Votaram bem?». Muito bem. Bom Domingo!!!!! E para si também.
Olhando para o meu irmão no piscinão, tão novo, tão contente, entre as rochas e o mar, penso nas vicissitudes que nos trocam as voltas e surpreendem, e o que era para ser já não é, e o que não era para ser, acabou por se instalar. Por enquanto. Se quisermos, nada é para sempre. As vicissitudes entre o piscinão e o mar podem ser uma grande ajuda e obrigar-nos a encontrar o caminho, com unhas e dentes antes que seja tarde. Antes que as noras nos odeiem, antes que as netas tenham medo, antes que o sol se ponha para lá do psicinão.