domingo, 24 de julho de 2011

Uma viagem na rocha

Íamos de casacos de lã para a praia, muito cedo, como o meu pai gostava. E no Baleal muito cedo quer dizer 8 e meia, hora improvável para se estar na praia, em que o vento assobia ou o nevoeiro está cerrado. Assim, parece, tenho uma ideia, de que levavamos vários casacos e que os íamos tirando até ao meio dia, em que o sol costumava aparecer. Um dia a minha mãe contou a rir que estávamos todos em cima de uma rocha, a fingir que era um barco, e a Fau estava a chorar desconsoladamente muito perto do dito barco. Perguntou-lhe porque chorava e ela disse que já ele já tinha partido, estava em andamento algures no oceano e que não a tinham avisado porque o barco já estava «cheio». Não cabia mais ninguém. Inocente, a Fau. Ficou na areia a chorar até que alguém lhe disse: «miúda, aquilo não é um barco, é uma rocha e está parada». Ela, confusa, lá foi secando as lágrimas. «Não é um barco?».
 Achei-me esperta diante da inocência dela, achei graça á sua credulidade, a chorar porque o barco partiu cheio e não a deixaram embarcar. As irmãs mais velhas podem ser assim. Quando são pequenas, pode acontecer que se sintam contentes quando as mais novas choram. Parece que faz parte da vida e há que aguentar, dizem os adultos que não percebem nada. A mais velha precisa de se sentir esperta, a mais nova ainda não aprendeu que o barco afinal «não partiu» e que as rochas não são barcos e que os miúdos triunfantes estão tão parados como ela, ali, na areia. Ainda acredita nas coisas coisa mágicas da vida, que o barco é afinal uma rocha alta e lindissima, firme na areia, apinhada de miudos contentes que acreditam que vão em viagem ao fim do mundo.
Grandes viagens se fazem nestas rochas imaginárias. Assim como se fazem na vida, depois, viagens que demoram anos a fazer, dentro de nós, fora de nós, ao lado de nós, por cima de nós, ao fundo de nós. Fazem-se milhões de viagens como se tivessemos um milhão de anos para viver. E temos. Um milhão de anos vividos, muitos desertos atravessados, muitos temporais enfrentados, por planaltos, montes e vales, em espaços «nunca antes navegados» feitos de rochas, pedras e vidros, algodão, céu e luz. A transformação tem vindo a cumprir-se, a par e passo, e agora temos uma pele nova em folha, uma alma refrescada. Vale muito a pena viver, que é como quem diz, viajar. Numa grande rocha alta, a cheirar a algas e a mar, a que um punhado de miudos um dia trepou, e se sentou no cimo, a velejar a dita rocha, em direcção ao fundo do horizonte.

sábado, 9 de julho de 2011

uma gota de água

«Eu, Mário Crespo, adolescente de 64 anos gosto de acreditar que depois da morte a vida não acaba e que nós, gotas de água, voltamos ao mar de onde viemos e fundimo-nos com ele para sempre». Não terão sido exactamente as palavras do jornalista Mário Crespo mas foi qualquer coisa assim que ouvi e que me deixou uma deliciosa tranquilidade. O homem é sensível, e gostei da maneira suave e determinada com que respondeu a Filomena Mónica, que mais uma vez declarou que não senhora, não acredita em nada de regressos de gotas ao mar imenso, porque com a morte acaba tudo. Acaba tudo. Tudo. Já a vi declarar este tipos de certezas de outras vezes, como uma espécie de desafio infantil, como um bater de pé teimoso, como uma adolescente rebelde de quase setenta anos, que teima que não acredita e que afirma isso de forma orgulhosa como se dissesse:«não tenho medo de nada, sou suficientemte forte para afrontar o medo da morte, do vazio, do nada, do fim da esperança, dos afectos, das ligações, das memórias, de tudo». Sou forte, diz ela, mas eu juro que lhe vejo um olhar assustado no fundo dos olhos azuis, eu diria que ela é ainda uma menina pequena, sozinha, desamparada, que mostra ao mundo que afronta o grande adeus da morte afirmando que depois dela nada nos espera, a não ser o nada e a  terra sobre uma caixa de madeira onde ficará o que resta do nosso corpo.
Ela pode até afrontar o medo, até pode esconder a apreensão, e é legitimo que o  faça. Todos temos direito a ter medo e cada um defende-se dele como pode. Mas sinto-me mais perto do «adolescente» Mário Crespo. Acredita que somos gotas de água. Também não faço esforço em me ver como uma gota de água - afinal o que sempre mais gostei de fazer foi mergulhar dentro dela, sentir-me fazer parte dela, sonhar com ela, nadar até ao fundo, rente á areia e sentir a sua frescura. Por isso, nada mais natural que ir ao seu encontro no momento em que tudo acabar. Não sei se será uma uma ilusão mas não, acho que não. Fundirmo-nos com um oceano maior parece-me justo, parece-me normal. As coisas, a vida, os afectos, aquilo de que somos feitos não merece acabar assim e de repente cairmos na escuridão profunda dos tempos e acabarmos feitos pó, sem memórias, sem passado, sem presente, sem nada. O afecto, só por si, não nos deixa acabar feitos esqueletos sem história. Ficamos nos corações dos outros e os outros ficam no nosso coração. O afecto que nos junta é prova de eternidade. Essa é a nossa eternidade. As palavras, as conversas, os risos e as cumplicidades, as alegrias e as tristezas fazem parte de uma ordem maior, subtil, muito mais fina e imensa do que uma caixa de madeira que desce á terra e nos remete ao esquecimento, ao nada. Eu sou adolescente, Mário Crespo. Acredito que sou uma gota de água, sim, e que no fim talvez tenha essa sorte e alegria imensa de me diluir e descansar para sempre no meio do mar imenso, afinal o mar onde molhei os pés desde que me lembro, onde nadei toda a minha infãncia e juventude, o mar que me ia engolindo várias vezes, das ondas altas de Outubro que me fizeram tanto medo. Mas afinal sinto que é ali que pertenço e que vai ser bom deixar-me diluir lentamente e juntar-me a todas as memórias de todos os tempos, para sempre.