sábado, 29 de dezembro de 2012

A memória dos espaços e uma gravata amarela

O mais bonito do Baleal é o espaço a perder de vista. Sentia-me tranquila quando acordava de manhã, na casa do terraço grande, abria a janela de madeira encarnada, corroída pelo vento salgado, e ouvia ao longe o barulho das vozes que subia até lá acima, eu inquieta por descer depressa até à praia que me esperava lá em baixo.  Sabia que ia ser um dia bom, livre,
agua salgada, eu a mergulhar, a conversar, a subir e a descer rochas, o cheiro dos limos verdes escuros, e se me apetecesse e estivesse maré vazia ia de certeza passear até perder de vista. ia certamente à procura do Joaquim, ia pedir-lhe que viesse comigo e iamos conversar as nossas conversas intermináveis, as ironias inacreditáveis, o seu imenso sentido de humor, o seu tom de voz, o sorriso, o riso ao canto da boca, olhavamos um para o outrio e sorriamos, ríamos, e ele tinha aqulea maneira diferente de ser. o que mais amei no Joaquim - e está sempre colado a ele, foi o seu sentido de liberdade, de diferença, de humor. A intimidade também se faz destas coisas, dos interesses em comum, das mesmas formas de nos rir das mesmas coisas. fazíamos muita troça de muita gente, uma troça benévola, sem maldade, mas que ele, com a sua inteligência, tornava tão subtil, tão sofisticada, tão volátil que era um prazer enorme para mim tentar segui-lo e apanhá-lo nos caminhos sinuosos e transparentes dos seus pensamentos e analogias «malvadas». muitos nos rimos nós. e continuamos a rir, tantos anos passados, quando tenho a sorte - rara - de estar com ele.
No dia do baptizado do Manel saímos de casa atrasados como de costume, e como de costumo o pai do pequeno ia nervoso. Tão nervoso que pela décima quadragésima vez nos enganámos à saida da auto-estrada para santarém e quando demos por nós íamos, claro, a caminho do Porto. O costume. Voltámos entre gritos e preocupações, entre acusações mútuas tipo «tu é que me distraíste», «eu nunca me engano sem uma razão», «afinal isto não é assim tão grave», e por afora. Grave ou não grave, chegamos á igreja atrasados e o Joaquim lá estava, lindo, com a sua gravata de seda amarela, o seu casaco azul escuro, o padrinho do meu Manel. O Joaquim apoiado numa bengala, creio.
 Nessa altura eu não tinha o sentido do controle das coisas, o tempo e o mundo fugiam-me pela ponta dos dedos, não sei como era, mas chegavamos sempre atrasados a todo o lado. O dia correu normal, e eu orgulhosa do Manel gordinho, eu ainda em plena vida de família «com crianças pequenas». Foi bom, de facto, apesar das viagens sempre atribuladas. Uma vez, sem querer, numa dessas viagens, alguém carregou no botão do gravador sem querer. Quando, algum tempo depois,ligamos o gravador e a cassette começou a rodar, ficam os de boca aberta com o que ouvimos. Berrávamos descontrolados um com o outro e sempre por causa  dos perigos eminentes que nos espreitavam na estrada, enquanto o João planava nas alturas. da gravação sobressaía um terrorífico «páaaaaara!, pára já!», ao que ele respondia, virando-se para mim, como se estivessemos sentados na sala, a beber um café: «mas o que foi, paro porquê?». «Porque nos vamos espetar n o carro da frente!, oh minha Nossa senhora!». ele olhava-me sem perceber, e dizia que quando guiava sozinho nunca por nunca ser se sentia em perigo. Curioso. Sempre tive o pânico quando ele se esquecia do volante e se voltava para trás, para ver a paisagem. mas o mal era meu, certamente. Nasci apanicada.

Joaquim, temos sobrevivido e tenho saudades da tua piscina na Azambuja, uma piscina que tu planeaste pequena, para nela só caber uma pessoa de cada vez, não fosse a tua casa e o teu jardim encherem-se de biliões de banhistas.
olha, Joaquim, prometo ir sozinha um dia destes a tua casa. e peço-te para tomar um banho na tua piscina, enquanto me fazes um chá. e peço-te já agora, se não for abusar muito, que me aqueças a água da piscina. eu entro a direito, e ali ficvarfei, de pé, água até ao pescoço, o vapor da água quente a sobrevoar o piscinão, assim como os banhos de vapor na Noruega.
Jaquim, tem pena de mim.