segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

um dia dos diabos e um anjo infeliz - parte 1

o Pedro e a Sónia já não moram na Estalagem Popular na Rua da Rosa. Disse-me o Vavá, o Álvaro «chefe máximo» da dita Estalagem. Qaundo subo as escadas escalavradas, forradas a linóleo podre e esfarrapado, ele espreita-me lá do cimo, desconfiado com a porta entreaberta do «escritório» em ruínas e informa-me que o casal deixou o quarto da estalagem mas deixarm lá toda a sua bagagem. Pergunto-lhe se sabe do contacto deles e ele diz-me que não, e adianta: «também não lhe vou dizer mais nada porque não sei quem a senhora é».Percebo, penso com os meus botões. Peço um papel para escrever umas palavras ao Pedro, pedindo-lhe desculpa pelo silêncio prolongado, por dentro soluço de remorsos - hoje é o dia de todas as identidficações tristes, parece que a Lua entrou em Escorpião de tarde - eu logo vi que havia lágrimas fundas  e ressentimentos vindos da minha pré-história pessoal.
Enquanto eu e o Vává ensaiamos umas palavras, entre o desconfiado, o hostil e um impulso estranho de amizade súbita, entra um homem gasto, cabelos branco, boca que articula palavras estranhas, que fala sem parar mas que eu mal consigo ouvir. Do fundo da sala o Vává faz-me gestos com a mão, aponta para a cabeça e diz-me sem som: «é maluco, não ligue». Eu sorrio ao homem cinzento e teimosaente falador, digo qualquerr coisa, viro-me de costas e começo a escrever umas palavras num papel:« Querido Pedro, desculpe ter desaparecido sem aviso. Espero que você e a Sónia estejam bem...». Na sala desfeita entra um brasileiro também grisalho, a quem o Vavá acusa, assim do nada, de «não fazer nada, não procurar emprego e de passar o dia a dormir». o Homem fica zangado e responde-lhe torto. Por segundos tenho um pensamento negro: «e se estes dois começassem á pancada? e eu aqui, em pleno Bairro Alto, numa estalagem mais do que duvidosa, a escrever um bilhetinho enquanto dois matulões se pegam á estalada e quem sabe facada. hesito um bocado mas cntinuo a escrever, não tenho nada a perder. Esta é a sensação que me acomoanha todos os diss de há um tempo para cá e dá-me um sentimento de força e tranquilidade imensas: «não tenho nada a perder». Assim, continuo calmamente a escrever enquanto o brasileiroo sai da sala no momento em que pensei que ia tudo pelos ares.
O Váva explica-me que este homem «velho» e preguiçoso consome coca o tempo todo. Olho para ele e fico á espera de mais informações. A conversa interessa-me demais. Que lugar incrível. começo a gostar do Vavá que me vai contando que é angolano e que foi abandonado quando era criança, e que teve lutar pela vida porque ninguém o faria por ele. «Trabalho 24 horas por dia». Tem duas filhas a quem tem de sustentar, «coisa que ninguém fez por mim». é assim, não há outra coisa a fazer. «Não me vou matar, pois não?». Não Vavá, isso não.
Entra mais um grisalho na sala desfeita, a cheirar a alcool. «Olha o Maradona», diz o Vavá. «Também é psicólogo como a senhora, D. Ana». pergunto-me como saberá ele da psicologia -o pedro contou-lhe. Digo-lhe: «estou ainda a estudar». o Homem que cheira a alcool sorri. «Ele também é psicólogo», diz o Vavá. sim, sou, diz o homem, estou desempregado. Olho-o com atenção e ele começa a rir-se. Riem-se os dois de mim. «estávamos a brincar», dizem a rir. «Não sou nada disso».
O grisalho começa de repente a falar do Passos Coelho e da Finlãndia e da Dinamarca, e dos programas que passam na televisão. Outro louco. Dá-me para embirrar e  ele irrita-se: «já vi que não atinge o que eu digo». O Váva defende-me: «Olha, a Dona Ana é boa pessoa, veio aqui porque se preocupa com as pessoas, cala-te Maradona».
Peço desculpa ao Maradona. Não sei porque raio de coisa, escorre-me uma lágrima pela cara, e outra, e outra. Estúpida. Ridícula. O que se passa? é da sala toda partida? é do escritório escuro e da televisão aos berros? é do brasileiro da coca? é do Martadona que cheira a alcool? O Vavá parece ouvir-me os pensamentos: «Dona Ana, sabe, o Maradona é um solitário, e o brasileiro da coca também». O Maradona, que «gastou todo o dinheiro que tinha», como me informou o Vavá uns minutos antes, salta da cadeira e aperta-me a mão: «sou solitário mas gostei de conversar consigo. preciso de conversar. você é um anjo da guarda».
As lágrimas caem como um rio mas não me importo. Eles também não, acham normal, não parecem estranhar. Prepararo-me para me despedir. Eu, um anjo? um anjo no call-center, a vender seguros de automóveis. Um anjo com telefone e computador, a explicar o custo de uma «cobertura GPS». Estranha forma de vida para um anjo que ao fikm do dia prega numa sala imunda na estalagem Popular no Bairro Alto, à rua da Rosa.
Os homens sorriem para mim: «prometa-me que volta, D. Ana,» sorri o Maradona, a segurar-me na mão. Do fundo da sala, sentado num sofá verde escuro todo rasgado, o «chefe máximo» da Estalagem Popular, sorri-me com um sorriso de ouro. «Volte, precisamos de conversar, esteja semopre à vontade, foi um prazer, saia da porta, entre outra vez na sala».
«tenho que me ir embora mas volto, vamos fazer um grupo de conversa». «Prometa», diz o Vavá, espero cá por si. Vou-me embora pela escada abaixo, qual anjo que foge com o coração a bater forte. Volto, grito da porta, obrigada, eu volto. Juro que volto. Volto, sim, vou-me sentar na sala caótica para conversar com os solitários da Estalagem. Vou aprender com eles, adoro histórias. Não resisto.
Na rua, olho para trás e vejo a ilha das Berlengas, o casario da ilha, o mar, a areia, o sonho, o ar transparente e a brisa que vem do mar. Volto, sim.