sexta-feira, 3 de maio de 2013

Uma nau no fundo do céu


Não costumo ver muito o meu irmão, não vive perto, foi para longe, o miúdo. Veio a Lisboa por via das naus, e aí está ele, microfone na mão, e nós, irmãs, encantadas, a vê-lo «evoluir» no palco, como se diz. E ele evolui bem, diga-se de passagem, isto é, parece que nasceu - e nasceu - para falar num palco das suas naus bem amadas. Poderia ser sobre uma coisa qualquer porque ele tem o dom da palavra. Lindo, o dom da palavra. aquela forma mágica de lançar palavras, encadeá-las, fazer rir a plateia que está presa delas, fazer uma declaração de amor a uma senhora que o escuta e o elogia, sentada nas filas da frente. A senhora tem olhos de águia, é bonita no seu cabelo branco e também ela solta na palavra, descontraída, inteligente. Continua assim um «namoro» antigo, trabalharam juntos e admiram-se. Sentadas a unas metros, as manas encantam-se. Por momentos, sonho estar também em cima do palco, com ele. Narcisismo, diz-me a minha irmã, fantasias de narcisismo. Pois. Temos todos um quê de narcisismo, temos muito mais coisas, é certo, mais dinâmicas complexas, tortuosas, sombrias umas, frescas outras, temos essa mania de fazer inventários de memórias, agora mais do que nunca talvez porque os anos passaram tão depressa que, de repente, muito das nossas vidas já é «história». Uma história simples, como a de toda a gente, mas animada de dramas verdadeiros e muito entusiasmantes.
Com a idade passei a gostar deste nosso lado emocional que vira mesas com raivas, ódios, amores, gritos, risos, ranger de dentes, lágrimas, arrepelar de cabelos e gargalhadas de vampiro, histéricas, tipo explosão de granadas de mão num exercício de prazer inegualável. Quando nos vemos ao espelho vemos uma família mista de ciganos, mexicanos e italianos. Muita pimenta e muita lágrima, muita intensidade.
Temos, vejo com alegria, um grande pendor para a viagem analítica. Desculpem, mas não sei viver sem esta palavra e não é arrogância nem assomo de intelectualidade. É paixão pura. Abrir o alçapão que nos leva à cave das origens ou subir as escadas para o sótão cheio de teias de aranha é a mais saborosa das aventuras. Gosto de chorar, acreditem. Nada melhor do que sentir as lágrimas a subirem do coração ou seja lá onde elas se escondem, até à garganta,e  de lá aos olhos, e assim afogar-me em soluços como se fosse morrer de desgosto apunhalante meia hora depois. Mas não, qual o quê! Depois de uma boa tarde de choro, o sono é pesado e doce, e de manhã, a minha pele brilha, perfeita. Deixei cair mais uma pele de serpente, seca e gasta, na curva do caminho.
Melhor do que chorar só mesmo rir até cair, e a isso, nós também brincamos muito: a ver quem ri mais.
Ora, como se manifesta o amor do meu irmão pela psicanálise, de que, secretamente e às escondidas, porque tem medo das minhas fúrias, se ri silenciosamente? - despreza-a um pouco, mas ele sabe, ele sabe de tudo, mas já se esqueceu que sabe. E tanto assim é que o gosto pelo caminho que o leva ao fundo de si mesmo foi o caminho das naus, das naus que nos levaram à Índia.
Acho graça ver, da plateia onde estou, a maneira como ele acabou por se dedicar á tarefa preferida da família (salvo raras e legitimas excepções): ir fundo, ir mais fundo, ver o que se esconde no fundo do mar, da água, da água  transparente e gelada do Atlântico, digamos... do Baleal, o ancoradouro das nossas almas de criança.
Foi lá que realmente aprendemos a mergulhar, é desse tempo que as minhas e as suas memórias nos vêm visitar. Ele mergulha literalmente ao fundo escuros dos mil mares por onde tem andado. E depois constrói naus em madeira imaginada, como se construísse a sua vida. Eu parti daquele cais romano numa enseada perdida no forte do Baleal. Ele gosta de canhões de ferro. Eu uso os canhões para imaginariamente disparar sobre a multidão. Ele refaz em 3D o mundo interior e complexo de uma nau. Pegou num fio e diz que vai seguir esse fio até à reconstituição da vida dos homens que navegavam na nau. Grandes planos, meu irmão! Refazer o barco da grande viagem, refazer os ventos que sopravam nas suas velas, atravessar o mundo e descobrir o segredo. O segredo de quem somos.
O meu irmão tem uma nave no fundo do céu que o levará à Lua. Em terra, espero que ele volte dessas grandes viagens e me conte tudo, enfim.