sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Sexta-feira, 30 de Dezembro de 2011

Quantos mares tens na tua vida?




hoje falava com uma amiga sobre Baleal e Tavira, dois lugares que dividem a minha vida ao meio, no bom sentido, claro. Dividir no sentido de separar duas épocas, duas fases, dois ciclos. O primeiro deles cabe todo no Baleal e nele vivem memórias que são as minhas fundações. Naquele tempo (como vem no Antigo ou Novo Testamento, não sei bem)... naquele tempo viviamos em Santarém, uma espécie de Texas europeu do século XIII, uma mistura bizarra entre memórias medievais, igrejas romanas e góticas, e touros, campinos, patilhas, touradas e capotes à Alentejana (e não à ribatejana como seria de esperar), bailes de garagem com mini e maxi saias, a Abidis onde ensaiavamos a nossa vida social, eu a morrer de timidez, com camisolas de lã feitas á mão pela minha mãe, mais os bailes de Carnaval no Clube, o terror de ficar sentada toda a noite sem  que ninguém me viesse buscar para dançar, a cara a escaldar depois de um slow, a excitação do twist nas festas de anos só com raparigas, as noites húmidas e frias nas ruas de São Bento a jogar às escondidas, o episódio triste do livro do padre Amaro. Coisas de mãe que se preocupa e que delata - sem maldade e na maior inocência - os meus mais íntimos segredos às minhas amigas - e a tragédia do tanque dos Themudos, em que fui acusada de ser queixinhas, um trauma que me perseguiu muitos anos. Subi a encosta do monte a correr, os cabelos a pingar a água do tanque, sufocada de desgosto, deixando para trás a «piscina» pintada de azul com a água transparente que chispava por entre as árvores à medida que eu me afastava.
Quando chegava o mês de Agosto, trocávamos Santarém em chamas pelo mar do Baleal em fúria e pelas intermináveis nortadas que nos punham literalmente os cabelos em pé. Acampávamos numas casinhas alugadas, felizes da vida. Um dia convidei uma amiga engraçada, que jamais havia pernoitado em tão precárias condições, e que nos olhou entre o aterrorizado e o dó, e nos disse com voz de mel: «são tão engraçadas estas casinhas de pobrezinhos, são tão patuscas». Estragou o ambiente, a dita cuja. Também fiquei dividida e baralhada como ela, por um lado um bocadinho humilhada (casinhas de pobres?), por outro com vontade de a meter na primeira camioneta para Lisboa. Mas era difícil e escusado explicar-lhe o nosso fervor pelas casinhas «de pobres». Era dificil explicar porque era tão bom andar descalça todo o dia e chegar ao fikm do mês de Agosto com a pele dura na sola do pé. Também não era fácil entusiasmá-la pelo prazer de ouvir o roncar das avionetas no céu azul depois do almoço, ou sentar-me nos bancos de pedra em frente ao mar, de andar em cima dos chorões, de passear quilómetros nas Pedras Muitas, de me deitar na areia fria da praia pelas nove horas da manhã. Um milhão de coisas pouco óbvias para poder explicar porque gostava tantio delas, e muito em particular demonstrar os efeitos do feitiço tremendo de um mar selvagem de muitos verdes por entre as rochas,  rochedos e nas poças à beira mar, onde um dia uma das crianças Ortigão se ia afogando porque foi descendo o pequeno abismo com passinhos suaves sem que a mãe se apercebesse do perigo da transparência traiçoeira. O menino foi pescado por uma alma benevolente enquanto a mãe dizia «ai!».
O mar sempre ali tão perto. O núcleo duro de mim está ali.
Muitos anos depois, foi Tavira, uma explosão de calor e de luz. Atravessámos o Algarve para almoçarmos em casa de uns amigos, no meio das figueiras. Quando pus o pé no chão, assim que chegámos, e senti o calor sufocante na cara, jurei voltar sempre. O sonho das noites abafadas. Tomar banho á noite na água escura e morna, tomar banho de dia na água transparente e quente. A minha mãe telefonou-me e disse: «estou de casaco comprido de Inverno, aqui no Baleal, porque esta noite arrefeceu». E eu, do outro lado do fio: «não consigo respirar com este calor, as noites deitam fumo como as fogueiras...». E se eu vestisse o meu casaco de Inverno num Agosto de 40 graus em Tavira?

Tavira linda, brilha de dia e de noite, atravessamos a ria de barco ás nove da noite, de volta a casa, depois de nos arrastarmos todo o dia nos toldos uns dos outros, feitos com lençois que trazemos de Lisboa. Este ano as areias mudaram e na maré baixa a ria está seca, atravessa-se a pé. Só enche na maré cheia, e mesmo assim encontro trilhos no fundo e passo para o outro lado com água pela cintura. Acabaram-se os barqueiros, sou eu agora que conduzo a minha vida. Exagero, não é bem assim mas quase. Eu e o barqueiro andamos de braço dado por entre os pântanos de lodo preto, os caranguejos saem de todo o lado. Por segundos tenho medo, acho que vou gritar, mas já não há volta a dar. Andar em frente e depressa. O barqueiro sorri-me de longe. Decidiu ficar para trás.
Tavira é como um coração enorme, generoso, o seu céu é demasiado azul, o sol incendeia tudo. Cem igrejas e muita música. Os meus amigos, as nossas tardes, as noites, as manhãs tranquilas. As conversas intermináveis dentro e fora de água. Em Tavira, neste segundo ciclo da minha vida, fiquei mais perto de mim por várias razões. E ficar mais perto de mim, é isso mesmo: é estar mais perto do fundo, voltar ao mar ali tão perto, é reencontrar o meu lado «atlântico», mais «rochoso», é voltar a sonhar com algas, vento e falangetas de dinossauro arrancadas às falésias com milhões de anos.
No Baleal, a água é a da alma inquieta. Em Tavira, a água é a do útero, onde voltamos para dormir uma sesta tranquila.