sábado, 26 de maio de 2012

SHUTTER ISLAND, a travessia de chumbo

shutter island

numa noite de inverno, no ano em que começou a mudança da minha vida, fui ao cinema com a minha amiga Ana Pimentel, a companheira amiga daquelas noites frias de novembro, em que o programa preferido era sentarmo-nos nas salas de cinema na sessão da noite, a mastigar discretamente picocas enquanto o filme corria, e nós no escuro, nas asas do sonho, a deixarmos o tempo correr e o filme entranhar-se lentamente, tinhamos o tempo todo do mundo, suspensas num tempo diferente, num tempo fora do tempo.
Boa companheira, a ana tem aquela qualidade maravilhosa que é o silêncio quando as imagens nos transcendem e a intensidade é tão densa que não há espaço para palavras. depois do cinema dirigiamo-nos lentamente ao café da esquina e bebíamos em silêncio uma cerveja gelada, as duas muito distantes dali, ainda dentro do filme. não havia lugar para palavras porque as palavras estragam as coisas fundas. Shutter island ficou para sempre dentro de mim e aquela ilha distante volta vezes sem conta aos meus sonhos, á minha vida. Fiquei para sempre presa naquela travessia sob um céu de chumbo e um mar escuro. Os dois homens a tremer de frio sob as gabardinas pesadas. ele fumava, inquieto, às medida que a o barco se aproximava da ilha, Aquela travessia, vim eu a perceber mais tarde, era na verdade a travessia que eu me preparava para fazer na minha vida naquele preciso momento. O barco era o mesmo que me levava ao lugar mais sombrio da minha vida, sob um céu de chumbo ao lugar onde vivia o mistério da minha natureza profunda, uma ilha de loucos, onde a verdade e a fantasia dramática viviam lado a lado, separadas por um fio de nylon, transparente, como o das canas de pesca. Foi lá que me revi, eu própria, perdida nos corredores labirínticos da ilha-prisão-manicómio, em que a verdade não era a verdade, e a mentira ficava para sempre por provar. Ali revivi os meus piores pesadelos, na duvida constante de procurar saber quem era eu afinal. Foi lá que me revi na tentativa de sobreviver á dúvida. tenho ou não tenho razão? Sonhei ou tenho razão, estava a imaginar ou afinal a realidade é esta mesma, que conheço?
 A descoberta da gruta onde vivia a mulher em fuga, a mulher que sabia a verdade e que era a minha unica aliada naquele mundo de loucos, e que me dava razão. Foi ela que me fez perceber que afinal eu tinha razão e que não tinha sonhado. Foi ela que me ensinou a acreditar em mim, mesmo quando todos negavam a verdade. Ela tinha conseguido fugir da prisão infernal e tinha a coragem de viver em fuga mas em verdade.
Quando ele/eu foi apanhado e preparado para a lobotomia que o iria fazer conformar-se com o veredicto de louco e resignar-se a não fazer ondas, fumou o seu último cigarro em lucidez perfeita e encarou a a sua submissão à «normalidade» com imensa dignidade. Levantou-se, apagou o cigarro e dirigiu-se para a sala da cirurgia. Disse-lhe adeus em silêncio, entreguei-.lhe o meu coração e toda a minha solidariedade, e murmurei-lhe de longe: a verdade é só uma e eu estou do teu lado.
Quando mais tarde ele voltar da operação, pensei, o olhar vazio de quem perdeu a memória e já não sabe quem é, eu estarei lá, à sua espera e serei a única testemunha da sua razão. Não, não estavas a sonhar, não tiveste culpa, não, não estavas enganado. tinhas razão.
Depois de fazer a travessia no barco, e de confiar no meu único amigo que afinal me veio a trairm, a minha vida mudou para sempre. A verdade incomoda mas nunca, por nunca ser, deixa de ser a verdade. a verdade´e a nossa mais profunda liberdade. Neste tempo de tsunamis, mesmo quando tudo desmorona, a verdade é a nossa garantia de força, é a nossa âncora, é a nossa raiz que nos ancora ás profundezas da terra, planta perene e eterna, que nos segura ao fundo de nós próprios apesar  da terra e do universo inteiro tremerem.
Ana pimentel, aquela noite em que fiz a travessia que me levou á ilha dos loucos resignados à mentira, aos que enlouquecerem para esquecer a verdade, eu vi pela primeira vez a luz da verdade e da esperança.
Este mar de prata, as Berlengas ao longe, o sol que cai por entre as nuvens são a mais maravilhosa promessa de verdade.