sexta-feira, 14 de outubro de 2011

a cada virar do berço segue-se um novo ciclo.


muitos anos ouvi uma história sobre mim, que a minha mãe contava alegremente, totalmente alheia ao facto de eu me sentir aterrorizada com  a sua alegre narrativa. Claro que as mães, coitadas, principalmente as mães dos anos 50/60, não faziam a mais pequena ideia do que era psicologia, quanto mais psicanálise. Nem queriam saber, aliás. Naquela altura ser intelectual era um insulto, saber mais do que de panelas e criadas era, diria,  uma verdaderira provocação ao pudor, ao recato, ao bom senso, á tranquilidade das tardes amenas passadas na cavaqueira antiga e despreocupada num mundo que desapareceu. Era um mundo tão tranquilo que se ouviam as moscas e as abelhas a esvoaçar preguiçosas, a bater nos candeeiros. Pois esse velho meteorito morreu para sempre e eu acho que vale a pena a aventura da sua morte, apesar dos incómodos perpétuos que causa. Porque é intenso este mundo. Complexo, rico, imenso, polémico, feroz, injusto, violento, vingativo, frio e cruel. mas eu adoro este raio deste mundo. O que eu gosto disto. Em cinquenta (e poucos...) anos, vivi cem. Nem mais. E pensar que foi por acaso que sobrevivi, o que eu teria perdido se assim não fosse. Assim, a história que me apavorava - não quer dizer que fosse apavorante - contava que na noite do meu nascimento, estando eu a dormir num berço alto, muito antigo, como se calcula, algures num estranho e bizarro hospital de Abrantes - ímagino mal esse lugar distante  mas penso imensas vezes que era mal iluminado e pintado de branco sujo, já amarelado, e nos cantos havia baldes com gazes sujas e coisas horriveis assim do género. Pois a minha mãe dormia o sono dos justos nesse lugar escuro em que esvoaçavam morcegos pela certa, e a m inha querida avó cuidada do meu sono leve, ainda mal abada de nascer, ao que parece muito feia, revelou-me solicita, a minha mãe, que é franca e honesta, e não gosta de mentir. A maioria das vezes, digamos. Pois eu era feia mas por sorte «fiquei bonita» - que sorte, meu deus! - ao contrário das minhas irmãs, coitadinhas, «mais feiinhas». Nunca recuperaram do encarquilhamento do parto.  Mãe, viva a honestidade, sim senhora, assim é que é.
Portanto, estava eu a dormir o sono de passarinho frágil acabado de arrancar às entranhas da mother, arrancar de uma forma, diga-se de passagem, inquietantemente moderna para a altura. Quer dizer, de cesariana feita com epidural.  Naquela Abrantes do fim do mundo faziam-se cesarianas com epidural há mais de duzentos anos, imaginem. Com o maior sucesso. Que estranho!!!!!! um médico muito á frente do seu tempo, pegou numa agulha e enfiou-a nas costas da minha mãe e assim a anestesiou. E eu fui rapidamente sacada das trevas.
Dormia eu portanto, o sono dos recém-chegados quando terei emitido um gemido. E a minha avó que me cuidava e velava, lançou a mão ao berço para me embalar. Mas...azar, estava escuro, o pé do berço era altissimo e leve e assim ela sem querer virou-me o berço ao contrário, e eu caí da altura de metros, «por sorte», diz a minha mãe com ar satisfeito, enrolada em muitos cobertores porque era inverno. e em Abrantes quase neva. Parece que foram os cobertores que me salvaram.
esta queda infernal entranhou-se em mim, não sei como foi, estas coisas do psiquismo são inafalíveis. Acho que várias vezes me despenhei, como um padrão na minha vida que não muda. Não deixa de ser excitante.
a cada virar do berço segue-se um novo ciclo. estou, no momento, talvez no chão, enrolada por sorte num mionte de cobertores quentinhos. a preparar-me para levantar voo outra vez.
Assim, quando olho para esta fotografia aérea do baleal, sinto uma vertigem, um calafrio de felicidade. É assim como uma promessa de queda, mas de queda no azul do mar, do céu, do mundo. é voltar às origens, como se despenhasse de um berço incomodo e me atirasse no azul da eternidade. Querido mar.