quem somos? somos o que fazemos, o que dizemos sem pensar, o que pensamos sem saber, o que amamos, por onde vamos, para onde vamos, o que sonhamos, como nos enraizamos, como voamos, como nos entregamos. No Baleal, há muitos anos, sentava-me em cima das rochas e ficava a olhar o mar lá no fundo, verde, verde escuro,verde mais claro, a espuma, depois outra vez verde escuro, depois o barulho da água funda a bater nas rochas. Naquelas estranhas rochas inclinadas, cinzentas, cortantes, meio enterradas na ágvua verde escura e funda. O meu pai contou-me que a ilha inclinada em talhadas era consequência de um terramoto, maremoto, vulcão, não sei. Acho que do fundo do mar se abriu um buraco enorme e deitou em jacto uma massa cinzenta a ferver e que esta caiu aos bocados no mar, como filas e filas de sanduiches de pedra. Ou então, a ilha estava sossegada no meio do mar, e a terra tremeu no fundo dos fundos e a ilha abanou, estremeceu, baralhou-se e «voltou-se», inclinou-se e assim ficou para sempre em fatias imensas, a entrarem na água escura em viés. Não sei porquê, mas aquela coisa da ilha entrar inclinada no mar emocionava-me ao máximo. Ficava ali horas e horas a ver as «fatias» perderem-se no verde das ondas, a imaginar esse primeiro tempo dos tempos, em que nada existia. E numa noite, subitamente, a ilha caiu de costas, mergulhou entortada. Milhares de anos depois, ali estava eu a olhar. Ainda estava tão longe de tudo. Ainda estava tudo para começar. Um dia uma mulher ia no barco com o marido marinheiro e o ferro com que apanhavam os chocos e os percebes caiu ao mar, sem que ela fosse a tempo de o agarrar. Ouviu-se um grande borborinho na ponta da ilha: a mulher atirara-se ao mar para salvar o ferro enorme. Estava toda vestida e o peso da roupa puxava-a para baixo - ela mal sabia nadar mas não largou o ferro. Cá em cima das rochas, as pessoas juntavam-se e pediam-lhe que o largasse para não ir para o fundo com ele. mas ela não ouvia nada, jurou que não o largava e ia avançada no abismo verde escuro gelado, sem largar o ferro comprido, o vestido agarrado às pernas, com os limos negros a prenderem-lhe as braçadas. Alguém lhe deitou uma mão e ela acabou por subir para o barco. Estava exausta, encharcada, o cabelo a pingar.
Pensei quanta coragem era preciso ter para mergulhar assim naquele mar tão intenso, tão selvagem, mas a mulher era da terra, vivia ali há muito tempo e estava habituada às agruras da vida, ao sol que lhe queimava a pele, ao sal que lhe gretava a boca, ao cabelo que se colava ao pescoço com a humidade da maresia. Tive medo por ela e por mim. Imaginei-me no lugar dela, pensei que às vezes não há saída e que a vida é dura e não há como fugir aos confrontos com o mar agreste que quase nos leva a vida. Muitas vezes não há mais nada a fazer senão mergulhar e arriscar tudo, sem ter tempo para pensar. Somos empurrados para a frente. Somos mais verdadeiros e inteiros, estamos mais perto de nós, em situações limite. Quando tudo corre bem, não temos grande intensidade. Arrastamo-nos agradavelmente entre duas chávenas de chá, uma torrada, duas conversas, umas brincadeiras e risos, tudo rola porque a vida é fácil,e ás vezes é tão fácil que nos fartamos da facilidade e inventamos insuportáveis dificuldades, coisas absurdas e pequenas, irrisórias, frivolidades imensas, confortos mornos que nos roubam a alma.
Quando sem querer caímos do barco e mergulhamos nos abismos verdes e gelados, e o mundo se vira do avesso, agimos como um todo, em bloco. É o momento do tudo ou nada. Tudo o que não é verdadeiramente importante fica para trás. Ficamos mais perto do centro, somos mais nós, levados às cegas pelas correntes da água. É a altura de nos entregarmos, voarmos, deixarmos os pensamentos terem vida própria, livres e nos levarem onde nos leva a liberdade.
Pensando bem, tudo isto é verdade, mas hoje gosto de me sentir a salvo, quentinha, na sala, a escrever o que me vem á cabeça, como se o mundo coubesse aqui dentro da minha sala. O mar, ao longe. A luta que espere. Hoje vou dormir descansada. Amanhã, veremos. Ainda vem longe.
Gosto muito de ti :) Não te digo porquê porque não vale a pena. Não aqui. Mas gosto.
ResponderEliminarbeijinho**
Adorei mergulhar neste teu mundo....
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