2009 - Setembro
Já cheguei das férias há mais de 8 dias e ainda não fui ver a minha
mãe ao lar. Bem sei que é de luxo, o preço nem podes imaginar, uma
fortuna. Que mundo tão estranho este em que o único sítio do mundo em
que cuidam de ti e se preocupam a sério em fazer-te passar os últimos
dias na Terra nas melhores e mais doces condições pedem-te um preço
astronómico. Impossível morrer bem quando se tem algum dinheiro,
dinheiro médio, sei lá. Tens que ter milhares para teres acesso a
cuidados verdadeiros. Quando fui lá com o João ia sempre de noite,
antes de Agosto, em noites calmas e cheias de estrelas. Aquele lugar -
Bobadela - parece um planeta diferente deste em que vivemos. Por
momentos cheguei a imaginar que giro seria viver ali, entre
improváveis montes de relva verde, no meio de ruelas e pequenos
bosques, moradias bonitas, pintadas de fresco. Como nos bons velhos
tempos em que não acordava sistematicamente deprimida, consegui
acordar o prazer de me imaginar a entrar naquelas casas e viver outra
vida que não fosse a minha. Não sei conheces a sensação que é o prazer
e a excitação de me imaginar a entrar num mundo que não é o meu e a
ter sensações novas com gente nova, quem sabe, uma tia descontraída e
desembaraçada, bem vestida, carácter forte, protectora, um primo
moderno, um...marido? não, um marido não, porque nessa vida eu seria
ainda nova, quer dizer, madura mas nova, isto é, a caminho de uma
carreira com sucesso e quase comprometida com um namorado bem
sucedido, claro, seguro e optimista, nada de sentimentalismos. A bem
dizer, quase que estou a gostar de pessoas com pouca «alma». Nada de
choraminguices, tudo alegre, confiante, o mundo é nosso, a noite é
brilhante e claro que temos um barco e claro que saímos todos os
fins-de-semana nele, e claro que temos uma grande sala super
confortável para trabalhar. Quer dizer, gostava de ter as costas
quentes numa família optimista e bem instalada na vida. E tudo isto
numa noite de estrelas, morna, e o rio ao longe, e uma estranha
mistura de campo com um subúrbio bom e moderno, em pleno Verão e eu a
subir a rampa da clínica do Mar, um nome maravilhoso que me fez
sonhar. Numa clínica do mar preparamo-nos para morrer e entrar
devagarinho num mar morno e escuro, e tudo isto sem medo.
Eu e o João entrámos pela calada da noite e fomos procurando o quarto
pelos corredores que parecem pertencer a uma nave espacial. Mas é
disso que se trata, de uma bela nave espacial, em silêncio fresco e
refrescante, corredores longos e suavemente iluminados e eis que
entrámos no quarto da minha mãe. Parámos por segundos sem perceber bem
onde era a porta porque esta arquitectura é mesmo de excelência,
fizeram da clínica uma nave pronta a descolar para o universo. Digo eu
pobre mortal, cheia de contas por pagar mas que ali me sinto
subitamente a salvo dessas pequenezas, uma vez que estamos em plena
nave de descolagem para outro mundo e que mundo. Deve ser bom. Se for
como esta nave doce cor de salmão, se tiver quartos com portas
gigantescas, giratórias, que se abrem sozinhas sem termos que lhes
tocar, até não me importava de dizer adeus á vida. Mas não, temos
mesmo que ficar aqui mais um tempo.
Por isso entro no quarto enorme e procuro a cara da minha mãe que deve
estar ali deitada, algures. sinto sempre medo. Estar á beira do abismo
é sempre assustador. E ali está ela, de olhos fechados, pele sem
rugas, cabelo branco, a sonhar descansadamente. Calculo. Tem um luxo
nunca visto -a minha irmã ficou impressionada, contou-me depois, com
esse luxo que «não se importava nada de o ter»,confessou, entre
sorrisos. Ora bem, o que será? pois é uma televisão com um braço
articulado, quer dizer, se queres ver aquilo de mais perto, puxas até
ti, até à tua cara, estejas deitada, sentada ou a dormir. Essa
televisão tão moderna e misteriosa angustia--me sem que eu perceba
porquê.
Ela abre os olhos, parece que vem a chegar de uma viagem
inter-galáctica. é estranho, comovedor e amedronta-me. Sorri e diz umas
palavras. Eu digo outras. Ficamos por ali a rondar, eu sento-me, puxo
a televisão para outro lado, mas acabamos todos a ver um programa
cómico, em que os participantes também estão vestidos de astronautas
prateados e de vez em quando caem a uma piscina. basta de loucuras.
Voltamos ao mundo real. Ela não dá muito pelo nosso adeus mas custa-me
sempre sair dali a fingir que vamos á sala e voltamos já. Como nos
infantários, em que as crianças ficam a berrar e nós a disfarçar,
sorridentes, quando o mundo desaba por dentro. Eu era assim. O mundo
desabava quando deixava o Zézinho com um ano no infantário. na
verdade, aquilo era um infanticídio. Não há coisa mais cruel que
separar assim os filhos das mães. e não me venham com histórias «de que
foi há muito tempo» e que eles não se lembram, e que aquilo não lhes
fez mal nenhum. A infância, diz um tal de Manuel de matos, um homem
que não conheço mas que já admiro profundamente, «a infância foi há duas
horas».
Foi assim que a vi a última vez. As férias acabaram e vou ter que lá
voltar. Ai meu Deus. Bobadela, noite, uma nave espacial, ai meus Deus,
o adeus tarda e eu vou ficando cada vez mais com esta sensação de que
estou sozinha, que não tarda entro numa nave e que tudo acaba.
Realmente, muita coisa já acabou entre mim e a minha mãe, mas ainda há
este fio de vida, não sei, este fio que não há maneira de quebrar.
Teté, acho que estou a viver agora, e só agora, o tempo da quebra dos
fios. Até aqui foi a brincar. Agora é mesmo a sério. O melhor é
começar a tentar encontrar um capacete para nave espacial. Que raio de
sentimento este, sozinha como um astronauta na superfície dura da lua.
E esta? Assusto-te?
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