quinta-feira, 19 de maio de 2011

Viagem ao fim do mundo. Cirurgia da alma.

As ondas voltam uma e outra vez, o movimento do mar nunca pára. E é um mar zangado, irrascível, que não perdoa, que nos esmaga o peito e empura contra a areia até perdermos o fôlego, e depois se afasta de novo, sem sequer se voltar para dizer adeus. Deixa-nos sozinhos na praia vazia, os pés enterram-se na areia e fazemos um esforço para não cair. Sabemos, com angústia, que a onda vai voltar e que talvez será maior.Quando mais se afasta de nós, maior será a força do regresso. Fugimos ou enfrentamos? Teremos tempo para fugir? teremos força para a aguentar o seu embate sem nos aforgarmos de vez? 
Hoje, depois de conseguir com custo trepar para o cimo do pequeno anfiteatro, de ter corrido algum risco de vida quando decidi saltar para a fila debaixo apoiada numa cadeira que balança, quando finalmente as luzes se apagaram como no cinema, um certo silêncio caíu agitado e o som do microfone da sala ao lado, separada de nós por um vidro-espelho, chegou finalmente até nós, fiquei imediatamente presa da história, não um conto de fadas mas uma história estranha e longa. Tristeza infinita, como muitos conhecemos. «Senhora melancolia», como o especialista lhe chamou. De costas para nós, um «cristo cruxificado», curvado pelo sofrimento conta então o seu calvário. À medida que o conta, o fio da narrativa torna-se mais firme, mais claro. O cristo diz que não pensa, que não sabe pensar, que está confuso, que baralha tudo, mas não. O caminho está lá todo, dir-se-ia quase completo embora o «especialista» garanta mais tarde que só se aflorou a ponta do iceberg.
E o milagre acontece ali mesmo. Um homem sentado olha atentamente uma mulher desfeita. Que ainda não se decidiu se quer ficar ou partir. Que fala e fala e fala, e conta tudo. Diz que não sabe como foi apanhada pelo desejo de morte, pela doença misteriosa que diz arrastar há anos, que não sabe de nada, que esteve para enlouquecer, que enlouqueceu e que foi tomada pela doença porque «sim». Foi caindo em cima dela como uma manta de lama que pouco a pouco a envolve e se faz pesada e escura nos seus ombros, a ponto de ela já não aguentar o seu peso. Porquê?, pergunta o homem. «Não sei», responde. Ele está ali e limita-se a escutá-la e a olhá-la. Não desvia um milimetro a sua atenção, quem olha de repente diria que ele está impassivel. Pela parte que me toca, sinto que a sua presença é tão forte, que enche, inteira, a sala peqena, como o génio da lâmpada dentro da garrfa fechada, comprimido, denso no sentir e no ouvir. A magia é esta e ocorre-me que há milagres: ele escuta-a tão intensamente como provavelmente ninguem a escutou nunca. E depois talvez seja também a densidade de chumbo com que ele o faz. E a empatia. E todo o seu ser que está ali posto à disposição da mulher, o cristo pregado na cruz que de repente começa a contar coisas importantes, uma história cheia de sentido trágico, como por vezes a vida sabe ser trágica.
Aparece, claro como um cristal, o caminho de morte. Onde terá começado, onde e porquê explodiu finalmente, como se desenvolveu até ela se arrastar entre a vida e a morte. É porque ela, a mulher «cristo crucificado» foi condenada á morte, há muito tempo pela própria mãe, assm como quem não quer a coisa. e depois a morte ded facto, nunca mais a deixou. o cristo debate-se estraçalhado entre o apelo de morte mas quer viver apesar da maldição e da fúria materna. E chama-lhe santa, «a melhor mãe do mundo». Sem se dar conta, revela cada passo, cada degrau da escada que a morte foi subindo no silêncio da sua alma atormentada, e de que forma a apodreceu. A morte terrível do irmão mais novo, as guerras, os medos e os traumas que traz dentro de si, vozinhas infames que clamam incessantemente pela sua morte. Vai ficando mais leve á medida que fala. Prepara-se para sair e ir embora, mas poderia ter ficado ali a tarde inteira e eu ficaria presa das suas histórias. Com quatro ou cinco palavras o homem absolve-a da dor insuportável da culpa. Diz-lhe que se perdoe e que esqueça tudo, porque não é criminosa. Ela ouve com atenção, ela mexe-se com facilidade noutras dimensões, liga-se facilmente ao invisível e de alguma maneira é facil sonhar com  ela. Conta as suas ligações com um além benéfico, a ligação profunda que tem com o único filho, como se adivinham, como se comunicm sem palavras.
Por momento tenho a ilusão eufórica de que poderia ficar ao lado dela. Apetece-me pedir ao homem que aceda a salvar mais uma vida, só mais uma. Que a cure para que ela possa vir ainda a ser feliz, memso que só por uns tempos, só uns meses, uns anos, mas ela merecia. Mas ele deve estar cansado, já tem a sua conta de salvamentos.
Milagre imenso, é para minha a certeza da origem e da sequência quase sagrada das tragédias, dos destinos e do sentido profundo das coisas. A vida é coisa muito séria, é para ser vivida com respeito aproveitando todas as alegrias sem deixar escapar uma , sempre que possível, para esconjurar o mal e a melancolia. Há caminhos de grande sofrimento, por um lado, e há formas simples e inteiras, completas, de lhe dar uma saída, por outro. Tudo é nomeável, e isso é coisa mágica. Falamos, curamos. É só desvendar, com uma chave mágica, a sequência das coisas, saber onde tudo começou.
Saio eufórica da aula. Se acabámos de tocar um milagre desta forma tão simples e profundamente eficaz, tão humanamente cirúrgica, então tudo é possível nesta vida. Aposto na alegria. Na celebração. na redenção.
Agradeço profundamente às minhas companheiras de entusiasmo pela descoberta destes caminhos, desta compreensão sagrada da vida.








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