Um dia caíu-me nas mãos um livro de Ingrid Betancourt, estava eu muito longe de saber de quem se tratava. Era senadora na Colômbia, tinha a ingenuidade de acreditar que era possível acabar com a corrupção e o tráfico de drogas na Colômbia. Como se sentia ameçada, escreveu o livro «Com raiva no coração» e editou-o em França, onde passara toda a sua juventude. sabia que mais tarde ou mais cedo poderia ser vítima do governo colombiano. Acabou por ser sequestrada pelas FARC, em 2002. Descobri, sem querer, um site na Net de Betancourt feito pela família, amigos e apoiantes. Fiquei toda a tarde, até à noite, a explorar o site, os testemunhos, as histórias, os videos dela quando casou, quando os filhos eram pequenos, quando voltou a casar, os discursos na assembleia, os passeios de mota, as campanhas. Gosto dos sul-americanos. Têm calor e intensidade. Fiquei presa da história de Ingrid e durante anos (ela foi presa em 2002 e libertada no Verão de 2008) pensava nela obsessivamente, via e revia os testemunhos do site, os seus companheiros que iam no carro quando ela foi presa e que contam os últimos minutos antes do sequestro. Estranhei particularmente a história da secretária dela, Clara Rojas, uma mulher solteira e que insistiu em acompanhá-la no cativeiro, apesar de Ingrid lhe suplicar que se fosse embora, porque os guerrilheiros não a queriam prender. Mas Clara insistiu e acompanhou-a na selva. Estranhei. Que grande amizade. Quase como dar a vida. Meses depois apareceram as duas numa cassete divulgada pelas Farc. Ainda estavam animadas e mandavam mensagens vigorosas. Mais tarde, lembro-me de ter visto outro testemunho de Clara, desta vez sózinha, com um ar estranho, falava em bordados que fazia «para ti querida mãezinha», contava como todos os dias se levantava e rezava e tomava banho num lago, como observava os rituais de limpeza e oração e havia ali qualquer coisa que me fascinava porque tudo no seu discurso engomado e florido me cheirava a uma vaga loucura. Muito tempo depois vim a saber que a solteira Clara se tinha apaixonado por um guerrilheiro das Farc, tinha ficado grávida e o apaixonado terá sido assassinado pelos seus companheiros terroristas. Os guerrilheiros irritam-se com histórias de amor em plena selva, especialmente entre sequestradores e sequestradas. Romeu e Julieta por ali não pega. Ainda vivem no tempo dos...Flinstones(?)
Clara deu á luz um rapaz em plena selva, no decorrer de um parto doloroso em que se conta que ela e o bebé estiveram entre a vida e a norte. A criança nasceu com um braço «partido», ela conseguiu guardá-lo uns meses junto de si, mas os guerrilheiros acabaram por lho tirar e deram o bebé a uma casal de camponeses que por sua vez o levaram, anos depois, para um orfanato em Bogotá. Quando foi finalmente libertada,Clara telefonou chorosa a agradecer a Chavez. Depois foi buscar o filho ao orfanato. Parece que tudo acabou inesperadamente bem. Benzinho, não sabemos tudo.
Entretanto, a minha imaginação fervilhava com o destino da bela Ingrid. Imaginava o que poderia uma pessoa sentir presa na selva, durante dias, meses e anos. Era romântico a assustador para mim que nunca vivi uma aventura a sério, a não ser quando decidi viajar para Londres e dividir uma casa sinistra com seis brasileiros vindos directo do interior do Brasil para o coração da capital inglesa. Dormíamos todos no chão, eles a fazerem churrasco no meio da sala, eu com a minha ropinha acabada de comprar em Lisboa a cheirar a fumo, pensando que conquistar a grande cidade era fácil. Grande ilusão meu Deus. Mas nada que se comparasse com as piranhas dos lagos onde Ingrid se banhava, com as horas sentada e acorrentada pelo pescoço, com o medo constante, a solidão, a desesperança, a depressão.
Depois, subitamente, Ingrid foi solta. E escreveu um livro com um título lindo: «Até o silêncio tem um fim». Ainda bem, fica aqui a esperança de que acabem de vez os silêncios. Amanhã há mais para quem quiser.
Ana, belo texto! e és mesmo tu, ouve-se a tua voz nas palavras. bjs vanda
ResponderEliminar