Toda a vida, desde que comecei a ser gente e a andar pela areia fora, tive o desejo imenso, irracional e desvairado de ir ás Berlengas. Ouvia falar das travessias de barco, dos ventos perigosos, da velha casca de noz que se «entornava» perigosamente, e do pessoal que corria alegremente perigo de vida, como os velhos marinheiros que se enfiavam num barco sem saber se voltavam. O mar, o gigante, a força bruta, pode ser romântico e interminável até ao horizonte mas também pode virar uma fera e dar cabo de tudo e de todos sem deitar uma lágrima.
Agora, que olho para trás, e que já começo a ter uma ideia do lugar que o mar ocupava e ocupa na nossa vida, na minha e na do meu irmão, vejo que ele esteve lá sempre e está ainda entranhado nas nossas fundações. A minha melhor noite do ano era a noite da «chegada», quando finalmente me deitava numa cama de colchão de palha, entre lençóis húmidos e frios, a vela apagava-se e eu deixava-me ficar muito tempo a ouvir o barulho do mar que entrava por todo lado, naquelas casas impensáveis, cheias de caruncho e bolor, em que as janelas mal fechavam. e ainda bem. Ouvir o mar a falar daquela maneira é ainda uma das minhas melhores recordações. As noites nas Azenhas, em cima de um mar imenso, são uma brincadeira ao pé do rugido do baleal by night escura. No fim do mundo, já não sabia onde acabava o mar e começava eu. E depois, a Berlenga. as berlengas.
As histórias das travessias difíceis. Depois de muito insistir, a minha mãe lá acedeu a levar-nos ás Berlengas, com um grupo de mães e crianças pequenas - lembro-me particularmento do Zé António da Nené. tenho uma fotografia em que eu, com cinco ou seis anos, o beijava à força e o miudo berrava como um doido, não sei se de medo, se de fartote, se de se birra. Sei que não ficou nada bem na fotografia: a boca toda aberta, desesperado, os dentes á mostra, o chapéu a cair, o fato de banho sem forma, um horror. Durante muito tempo pensei porque me eu teria dado ao trabalhado de beijar teimosamente semelhante criatura, ainda por cima estando ele tão contrafeito, tão furioso e ...como diria... assustado? Não mereceu, pensei anos e anos, não mereceu. Hoje olho a fotografia e sinto uma ternura imensa. Coitadinho do Zé. Era um dos meus grandes amigos. Acho que ele terá ido na viagem á Berlenga. A minha mãe apavorada, como era o seu estado normal, enfiou-nos Vomidrine, o comprimidinho amarrelo e amargo pela garganta abaixo. Era para «não enjoar». Obrigadinho. Não enjoei mas fiquei com sono e a boca amarga. Naquela altura a minha mãe enfiava-nos o que queria pela boca abaixo, desde sardinhas assadas com espinhas (porque era muito bom), até sopa de ovos com tomate e óleo de fígado de bacalhau misturados. E nós, que ignorávamos que havia lá fora um mundo diferente, papávamos tudo sem um pio.
A travessia ficou-me na memória. A postura da minha mãe dava a entender que a qualquer momento o barco podia naufragar, mas OK, pensava, pois que naufrague, sempre seria uma sensação diferente. O que eu mais queria era aventura. Apesar dos Vomidrine, houve alguém que vomitou. Vi uma rajada de uma papa branca a rasar-me o nariz, levada pelo vento feroz. Penso que foi a Fau mas ninguém disse nada. Também tenho a ideia de que nos deram umas sanduíches e nos ordenaram que nos sentássemos no chão para o barco não virar, especialmente lá num sitio particularmente perigoso, uma espécie de passagem da barra, tipo Barra do Inferno, em que há vagalhões à espera das nozes.
O barco passou, resistiu e ancorou. O meu coração batia mais depressa. Dei os meus primeiros passos no cimento, a cambalear com o vomidrine e o vento. Mas a ilha estava em perfeita paz. Entrei no paraíso. A sensação geral que me ficou até hoje foi de felicidade plena que atingiu o seu máximo quando descemos para esta praia, onde rapidamente se perdia o pé na água transparente. Estava «quente», a água, coisa quase impensável nas Berlengas. Mas eu lembro-me dela, de facto, pelo menos morna. Foi o meu histórico regresso ao útero, onde vivi o melhor sonho da minha vida. Passei o dia a nadar, todos a nadar, mesmo os que não sabiam, uma felicidade imensa que ficou para sempre na minha memoria e que voltou várias vezes em sonhos simbolicos de satisfação pura. Um contraponto aos piores pesadelos, aquele mar quente, cristalino, onde nadei em liberdade, num lugar perfeito em que a minha mãe parece que momentaneamente se esqueceu de ter medo. Este Setembro vou ter que voltar às Berlengas, já que estamos em maré de reencontros, de sonhos, de memórias e de esperança.