Boas recordações, faz uma lista de boas recordações da tua vida, diz inesperadamente a minha explicadora de estatística. fico a olhar para ela, e de repente sinto-me apanhada numa armadilha. Melhor, sinto-me apanhada como se tivesse sete anos e tivesse sido chamada ao quadro preto na escola pela professora má. Daquelas professoras que mandam em nós e nos apanham em falso, sem a lição sabida. esta, por exemplo, é uma das minhas memórias antigas mas não, não é uma memória feliz. Pertence, isso sim, á lista das memórias más e sobre esta lista teria muito a dizer, como por exemplo, sobre os efeitos do sadismo de certas professoras-mães-avós-madrinhas-meninas que fazem bullying (como agora se diz, e bem)- e outras mulheres que tal, que se divertem a aterrorizar crianças que sentem mais frágeis e desprotegidas. Ainda oiço hoje algumas destas vozes ácidas, que nos olham no fundo dos olhos para ver se encontram medos escondidos por onde possam entrar. E encontram. e espetam o dedo e fazem uma voz que nos arrepia, fria, autoritária, insuportavelmente esmagadora. Estas vozes não são de geração espontãnea. Estas mulheres cresceram a ouvi-las e repetem-nas, tal qual as ouviram. Também elas foram humilhadas do alto de mulheres com poder, das suas avós desalmadas, das suas mães enlouquecedoras, das suas professoras frustradas, das suas amigas crueis. Gostam de brincar ao poder com crianças porque é fácil humilhar crianças. Para vingar as nossas próprias humilhações. Ponto.
Vamos agora às memorias felizes. Começo a puxar por um fio e elas aparecem de repente do nada, eu que julgava que ia ser difícil lembrá-las. mas não, é fácil. E genuíno. Não é preciso inventar memórias felizes porque elas aparecem. Lembro-me de uma noite em que depois de jantar em casa da minha bisavó que tínhamos vindo visitar a Lisboa, me puseram a dormir num quarto ao lado da casa de jantar e eu, estranha na casa das cadeiras «douradas», cuja dona tinha já oitenta e muitos anos e falava com os «senhores» da televisão, que a conheciam, dizia ela, ligeiramente demente, ausente e muito doce, com o seu cabelo branco e olhar sonhador e perdido.
Adormeci neesa noite feliz como nunca. Não sei que idade teria mas lembro-me que adormeci enrolada em casacos e cobertores - era um sono de criança «improvisado», á espera que me levassem para casa mais tarde, quando os adultos na sala se cansassem da conversa.
Ouvia-os de longe, zonza de sono, conversar na mesa ainda posta, sem perceber nada do que diziam. Mas a cadência das palavras difusas, os risos e o tilintar dos pratos de sobremesa encheram-me de um conforto infinitamente feliz. Aquela familia, aquelas vozes em paz e em risos, davam-me uma segurança enorme. Olhei para o tecto onde se refletia a luz do corredor, aconcheguei-me nos cobertors da minha doce bisavó um pouco demente e ausente, e deixei-me ir, sossegada e feliz, para sonhos tranquilos.
Esta é uma das memórias mais felizes da minha vida. Uma noite, vozes e risos, a segurança da pertença ainda que fugaz, o conforto de poder adomecer em paz, sozinha mas acompanhada por dentro.
Depois, o Tramagal, a casa com jardim, patos e lago, as escadas para o sótão, a casa de banho de baixo, fresca, brilhante, onde tirávamos as sandálias sujas de terra do pinhal e lavávamos os pés pretos na água fria da torneira antes de ir almoçar. o quarto da minha avó, a cozinha cheia de luz. E felicidade infinita: a banheira branca no andar de cima, em frente á janela grande, o chão sempre morno, o banho de imersão sem tempo. Eterno. Uma coisa proibida em minha casa. Dezenas de anos depois ainda me vejo a dar um último mergulho na banheira antes de deitar uma olhadela para o pinhal. Imagem mágica que me leva para trás e que guardo como um tesouro.
Depois, o dia em que a Clara nasceu e eu tinha treze anos. Estava tão agitada que falava sozinha para o espelho. Tive medo da minha agitação, do meu contentamento excessivo que mais parecia uma crise de mania. Sabia que ia buscar um bebé ao hospital dentro de pouco tempo. Um bebé em casa, um bebé que eu até poderia ajudar a crescer, que me ia sorrir. A agitação era tanta que me fazia tremer. Meses depois, cheguei a casa um dia de tarde, e o bebé chorava inconsolável no colo da empregada. Tirei-lho dos braços e embalei a pequena, cabeça contra cabeça, junto á janela de onde se via o rio correr ao longe. Forjámos ali um pacto entre as duas. Ela acalmou-se, encostou-se a mim e os soluços foram parando. Fiquei contente porque consegui acalmá-la. Uf! esta criança confia em mim. Fizémos um silêncio cúmplice para sempre.
Percebi que podia continuar a escrever horas, meses, anos. o meu primeiro amor, os passeios nas praias desertas do Baleal, a minha primeira viagem para o estrangeiro, sozinha, conversas longas, as piadas da Teresa que me faziam rir até á lágrimas, mesmo nos momentos mais trágicos das nossas vidas. O nascimento dos meus filhos. A cara deles. as mãos pequeninas. os sorrisos. as palavras. O corpo quente do bebé e as mãos á volta do nosso pescoço.
Mil e uma histórias de amizade, os risos, a música, as conversas com o Nuno Fragoso e a nossa psicanálise caseira, em que jogamos ao «adivinha quem és», à descoberta «das tuas vicissitudes edipianas», ao «alimenta o meu narcisismo», ao «quem foge mais depressa da depressão», às «venturas e desventuras, esperança e desesperança, mágoas e alegrias da transferência», ás delicias «da capacidade imensa, eterna e omnipresnete da associação», ao «adivinha as minhas projecções», ao «faz de meu espelho», à «esperança e à fantasia que levam á loucura», à dureza «do teu princípio da realidade», ao identificar «dos nossos núcleos psicóticos» e a muitas outras, infinitas viagens ao fundo de nós próprios.
Ao almoço de sábado dos dinâmicos do frango e couscous. e a muitas outras coisas que aqui não cabem dizer porque, simplesmente, não há espaço.
Tudo isto chega para ser feliz? Não. Mas devia chegar, não? Sim, mas não chega.
Porquê? porque as memórias tristes também fazem uma falta imensa à nossa felicidade. Ajudam-nos a ir procurar as lágrimas congeladas, aquecê-las e fazê-las saltar dos olhos, o que não é coisa pouca - ficamos tão infinitamente mais leves! Nada mais delicioso que chorar uma perda, uma saudade, uma renúncia.
Não, renunciar é mesmo mau. Vai para além do suportável e é injusto.
Mas as memórias tristes são indispensáveis para a densidade. para a intensidade. para a possibilidade de estrutura. para o esforço da construção. para serem ultrapassadas, valorizadas, choradas. As memórias tristes casam bem com as memórias felizez, completam o puzzle complexo das nossas vidas.
E sim, também podemos rir delas, também. Rir é como dançar, faz-nos felizes.
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